segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Contra o rentismo

Até o fim do governo Dilma, 80% da dívida atrelada à Selic vai vencer. É uma chance de estabelecer um patamar civilizado de juros no Brasil. Foto: Yasuyoshi/AFP

Em que pesem todos os prováveis efeitos negativos da atual onda de volatilidade a varrer os mercados financeiros internacionais, começa a se formar, no Brasil, um consenso sobre a possibilidade de aproveitar o momento para trazer os juros domésticos a níveis mais próximos do restante do mundo, aí incluídos os países desenvolvidos e emergentes. Após cinco elevações da taxa básica, a Selic, até os atuais 12,5% ao ano, o Banco Central sinaliza ter dado fim ao aperto monetário. Além do simples corte do índice, economistas sugerem que o governo aproveite o momento e prepare o terreno para uma queda mais pronunciada e, é claro, duradoura do custo do dinheiro.

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Um primeiro passo seria desatrelar a dívida pública federal da Selic, que hoje garante aos credores do Brasil uma segurança sem paralelo em outros cantos do mundo. Quase 35% das obrigações do governo são reajustadas automaticamente pela taxa básica de juros, o que também influencia diretamente a remuneração oferecida pelos demais títulos. Em entrevista recente a CartaCapital, o ex-ministro da Fazenda Delfim Netto sugeriu que a presidenta Dilma Rousseff se aproveite do fato de que mais de 80% da parcela dos títulos públicos atrelados à Selic vence até o fim de seu mandato e “mude o mecanismo de financiamento” do governo.

Em maio, a equipe econômica chegou a estudar a substituição da Selic por outro indexador, chamado de Libor brasileira, um índice criado pela BM&FBovespa com inspiração na taxa Libor britânica, e que seria calculado a cada três e seis meses com base na curva futura de Depósitos Interbancários (DI). Na prática, seria um meio de romper com o uso dos Certificados de DI (CDI), uma referência de curtíssimo prazo usada desde os tempos de hiperinflação.

O plano parecia não ter avançado, até que, no dia 12 deste mês, o presidente do BC, Alexandre Tombini, apresentou ao mercado a Taxa Preferencial Brasileira. O índice será baseado nas condições oferecidas pelas instituições financeiras aos seus melhores clientes, a exemplo da taxa prime calculada por outros bancos centrais. A aposta é que, ao tornar-se referência no mercado de crédito, a “prime brasileira” estimulará o barateamento das diversas modalidades de empréstimos, a começar pela dívida contraída pelo setor público.

Enquanto não torna oficial a estratégia de substituição dos títulos indexados à Selic (as chamadas Letras Financeiras do Tesouro, ou LFTs), a Secretaria do Tesouro Nacional, sob o comando de Arno Augustin, tem optado por limitar a emissão de papéis. Daí o anúncio, na terça-feira 23, da redução de cerca de 4% no tamanho da dívida pública federal, hoje em 1,73 trilhão de reais. O Tesouro valeu-se do chamado colchão de liquidez, que hoje permitiria ao Brasil cumprir com as obrigações externas por até seis meses sem efetuar rolagens de títulos (troca de papéis vencidos por outros novos).

O Tesouro, conduzido por Augustin, vendeu menos títulos e reduziu a dívida em 4%. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABR

Diante das incertezas no mercado internacional, no entanto, os investidores fugiram dos títulos pré-fixados, cuja participação na composição da dívida caiu de 38,13% para 34,49%, e reforçaram a aposta nas LFTs, que cresceram de 30,91% para 32,61% do total. O Plano Anual de Financiamento (PAF) de 2011 prevê que os títulos indexados pela Selic terminarão o ano com um peso entre os limites de 28% a 33% do endividamento público.

No acumulado até julho, a dívida pública federal cresceu apenas 2,4%. Em seis anos, porém, o montante elevou-se em quase 50%. A dívida somava 1,16 trilhão de reais em 2005, com 43,9% do valor diretamente atrelado à taxa Selic. Nesse período, o governo conseguiu, por outro lado, alongar o prazo médio dos vencimentos, de dois anos e oito meses para três anos e nove meses em julho.

Ao estudar as séries históricas de rendimento dos diferentes títulos públicos, o especialista em contas públicas Amir Khair, ex-secretário de Finanças da prefeitura de São Paulo, percebeu a convergência de todos em torno dos indexados à taxa básica de juros. “Quando a Selic sobe, o investidor passa a exigir que todas as aplicações ofereçam o mesmo ganho. Por isso é preciso calcular o impacto da taxa sobre a dívida não só com base na parcela diretamente atrelada a ela, mas sobre o valor total. Da mesma forma, uma redução consistente dos juros pode puxar para baixo o custo de toda a dívida.”

Khair defende uma queda rápida da taxa de juros, com a ampliação do uso de medidas macroprudenciais para conter a expansão do crédito, caso a inflação dê novos sinais de recrudescimento. “A Selic só tem se mostrado eficiente para favorecer a entrada de dólares no País.” Não por acaso, as LFTs são os títulos públicos preferidos pelos investidores estrangeiros, e compõem 62,8% da carteira dos credores não residentes no Brasil.

O professor de Economia do Ibmec José Ricardo da Costa e Silva vê a desindexação dos títulos públicos como pré-condição para a queda consistente dos juros, mas ressalva que a alteração do perfil da dívida pode ter um custo elevado, de acordo com o momento da substituição dos papéis. “Se for realizar a troca por títulos de rendimento préfixado, o governo precisa observar as tendências da economia. Se achamos que as condições vão ser melhores lá na frente, não precisamos nos comprometer a pagar uma taxa que pode se mostrar elevada num futuro próximo.”

Diferentemente das empresas, o governo não tem a opção de buscar recursos mais baratos ao contrair empréstimos diretamente no exterior, em moeda estrangeira. O problema é que, ao ingressar no País, os dólares precisam ser trocados por reais, o que pressiona a taxa de juros. A única maneira de driblar esse efeito é emitir títulos para retirar do mercado o excedente de dinheiro em circulação, ao elevado custo dos juros domésticos. A operação, chamada de esterilização, praticamente anula o ganho obtido no exterior. Em outras palavras, o País é refém dos humores do mercado doméstico.

O Tesouro pode avaliar o custo da dívida conforme a evolução dos efeitos da crise financeira internacional”, diz Costa e Silva. “Como a previsão é que a inflação ceda e os juros caiam no médio prazo, os títulos indexados não são um problema imediato, embora seja positivo ficar atento aos vencimentos para mudar o perfil da dívida.”

Enquanto realiza, paulatinamente, o desatrelamento da dívida pública à Selic, o economista sugere que o governo trabalhe na remoção de outro obstáculo à queda dos juros, também citado por Delfim Netto: as regras da poupança. A barreira, neste caso, é bem mais visível. Quando a taxa começa a se aproximar dos 6% de remuneração fixa garantida pela poupança (que ainda é somada à Taxa Referencial), as operações monetárias tendem a uma desarticulação, com um grande afluxo de recursos para a caderneta.

Em julho de 2009, quando o Brasil se recuperava dos efeitos da turbulência financeira internacional que se seguiu à quebra do Lehman Brothers, a taxa básica de juros chegou ao mais baixo patamar desde a criação do Plano Real, 8,75%. Foi o bastante para que o Tesouro acendesse a luz amarela. Identificava-se, então, o risco concreto de uma migração em massa dos recursos de fundos de investimentos, grandes financiadores da dívida pública, para os ganhos garantidos da poupança.

O governo chegou a anunciar mudanças na poupança, que praticamente se limitavam à cobrança de Imposto de Renda nas aplicações superiores a 50 mil reais. Embora a tendência fosse apenas adiar o problema, na medida em que a Selic continuasse em queda, a medida não chegou a sair do papel. O aquecimento da economia prenunciava um novo ciclo de aperto monetário e os juros voltaram a subir em março de 2010. “Se ainda resta algo da cultura inflacionária na sociedade é a ansiedade para comprar e a expectativa de rendimentos elevados para poupar”, diz Silva.

O que defendem os economistas é que o governo aproveite o momento atual, quando as taxas de juros parecem ter atingido um pico, para pavimentar e, se possível, alongar o caminho de descida. Nesse sentido, desindexar as aplicações financeiras seria um bom começo para uma tarefa ainda mais complexa, embora não menos necessária: ensinar aos brasileiros que vale a pena guardar dinheiro para consumir no futuro, mas o retorno via capitalização, em uma economia desenvolvida, ocorre apenas no longo prazo. •

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