sábado, 21 de janeiro de 2017

QUANDO AS TEORIAS CONSPIRATÓRIAS SÃO MAIS FORTES QUE OS FATOS

Postado em 21 Jan 2017

Teori

A advogada Luiza Eluf, ex-procuradora de Justiça, falava sobre como trabalhou para incluir no Código Penal a figura do feminicídio, que aumentou a pena para quem mata mulher em razão do gênero. O telefone toca e, do outro lado da linha, o marido, Jorge Eluf, conta que caiu um avião em Paraty e nele estava Teori Zavascki. “Nossa!”, exclamou.

Pouco tempo depois, Jorge Eluf chega ao escritório e diz que a notícia foi confirmada. Eu entrevistava Luiza Eluf e comento: “Já vi esse filme. Teori Zavascki é o tipo de pessoa que não tem direito de morrer simplesmente. Alguém sempre dirá que foi assassinado.”

— É mesmo, ele era o relator da Lava Jato! – exclama a advogada.

A jornalista Glória Maria se diverte com a teoria da conspiração que se criou a partir da doença que impediu Tancredo Neves de tomar posse como presidente da República, em 1985. Na véspera da posse, depois de ir a uma missa, Tancredo Neves foi internado com diverticulite aguda, teve complicações e semanas depois morreu.

O site Noite Sinistra relata: “A repórter Gloria Maria, presenciou a cena. Logo em seguida a jornalista acabou se tornando correspondente internacional no Marrocos, o que é visto pelos conspiracionistas como uma forma usada pela Globo de afastar a jornalista das discussões a respeito do caso.” Noite Sinistra tem como slogan: “Quando amanhecer, você já será um de nós.”

Outro site, a Sociedade Olho de Horus (“Uma mente expandida jamais retorna a seu tamanho original”) dá detalhes do assassinato: durante a missa, num apagar de luzes, “ouviu-se um estampido, o qual teria vitimado o presidente eleito. Nesse evento, a jornalista que cobria os fatos em Brasília viu tudo e foi atingida também”.

Segundo a Sociedade Olho de Horus, foi esse o motivo que levou a Globo a tirar Glória Maria do Brasil e enviá-la para ser correspondente na Europa, “voltando ao Brasil só anos depois”.

“A Verdade no Mundo” também aborda o assunto e um de seus comentaristas assegura: “Eu também assistia à televisão neste dia e descrevo aqui o que vi e ouvi. A repórter Glória Maria de repente gritou ‘Ouvi um tiro aqui!’ e instantaneamente a imagem sumiu e, desde então, nunca mais se viu Glória Maria na TV, só retornando dois anos depois. Esta mulher sabe tudo o que aconteceu”.

Há pouco tempo, num programa de TV, Glória Maria quebrou o silêncio em torno do assunto, rindo:

“Eu apresentava o jornal das 7h na época. E aí eu não pude participar dessa cobertura em São Paulo, que era onde ele estava agoniando. Tive que ficar no Rio, e as pessoas não me viam nessa cobertura nacional. Então, se eu não estava ali, é porque tinha um mistério em torno da morte do presidente. Esse mistério era que ele tinha levado um tiro, esse tiro teria atingido a minha perna e eu teria ficado hospitalizada, incomunicável. Começou a surgir uma coisa tão absurda… Eu tive que entrar em todos os jornais ao vivo para mostrar que eu estava viva.”

Em casos de grande repercussão, as teorias conspiratórias são comuns, previsíveis e, na maioria das vezes, inofensivas – Kim Kardashian teria inventado um roubo a seu apartamento para desviar a atenção para cirurgia que fez para reduzir o bumbum. O problema é quando ultrapassam o limite da conversa de botequim, do bate-papo entre amigos e da desacreditada rede social para contaminar o trabalho das autoridades. E isso sempre acontece por intermédio da imprensa que se apresenta como “séria”, como o olhar independente sobre os acontecimentos da Nação.

Eu trabalhava na revista Veja e cobri o caso da morte de PC Farias, que havia sido tesoureiro do presidente Fernando Collor de Mello. “Queima de arquivo”, sentenciou a voz das ruas.

Eu era repórter da Rede Globo quando mataram o prefeito de Santo André Celso Daniel, indicado para coordenar a campanha do então pré-candidato a presidente Lula. “Silenciaram o Celso Daniel”, decretou o senso comum.

Também cobri o caso de Celso Daniel pela TV Globo e fui o primeiro repórter a chegar à cena do crime. Depois, estive várias vezes na favela Pantanal, local do primeiro cativeiro, e acompanhei de perto a investigação feita pelo DHPP.

PC Farias foi vítima de crime passional, conforme conto no meu livro “Basta! Sensacionalismo e farsa na cobertura jornalística do assassinato de PC Farias”.

E Celso Daniel foi vítima da violência urbana. Era um sequestro relâmpago, como acontecem muitos na cidade de São Paulo – naquela época mais, era o que poderia se chamar de crime da moda — , e provavelmente não teria morrido se a Globo, minutos depois do sequestro, não tivesse noticiado com estardalhaço que se tratava do prefeito de Santo André.

Os bandidos eram habituados a esse tipo de crime, mas diante da repercussão houve uma ordem para encerrar o sequestro, o que foi entendido como eliminar a vítima.

“Foi uma sucessão de erros”, me disse à época a delegada Elisabete Sato, hoje diretora do Departamento de Homicídios.

O assassinato de Celso Daniel foi investigado pela polícia duas vezes. Como na primeira vez as teorias conspiratórias prevaleceram sobre a investigação policial, houve nova investigação, por outra equipe, e o resultado foi o mesmo.

Detalhe: nas duas investigações da polícia, o governo estava nas mãos do PSDB, interessado no desgaste do rival PT. Mas foi o Ministério Público de São Paulo que atropelou os fatos e fez uma investigação por conta própria. Algumas pessoas foram para o banco dos réus e, incrível, condenadas.

Eram pelo menos sete pessoas envolvidas no sequestro. Nenhuma confessou. Todas sustentaram versões consistentes.

Quando entrevistei os dois promotores que conduziram a investigação, não ouvi uma história que tivesse começo, meio e fim. Apenas indícios e suposições que, no conjunto, significavam: tem alguma coisa errada. E tinha mesmo – caixa 2 de campanha ou corrupção –, mas daí a concluir que Sérgio Sombra, o amigo de Celso Daniel, mandou sequestrar o prefeito e depois matá-lo, a mando do PT, para calar uma suposta ameaça, vai uma distância gigantesca.

Teria sido muito mais fácil eliminar o prefeito de outra maneira, simulando um roubo, por exemplo, sem que ele, Sérgio Sombra, estivesse presente.

Na madrugada do sequestro, depois de encontrar o Pajero de Sérgio Sombra abandonado numa rua de São Paulo, fui até o apartamento de Celso Daniel e vi que era simples, extremamente vulnerável. Por que simular o sequestro, envolvendo uma quadrilha enorme, se era mais fácil fazer ali o serviço?

Além disso, salvo a propagação de fofocas, não havia absolutamente nenhuma evidência de que Celso Daniel efetivamente queria detonar o PT. Pelo contrário. Ele era um político em ascensão no partido. Mas vai convencer uma redação disso, depois que o veículo engatou uma quinta e avançou na tese da queima de arquivo…

Com PC Farias, o PT surfou na onda da teoria da conspiração e, depois, quando esteve no epicentro do terremoto de Celso Daniel, algumas lideranças devem ter percebido o erro que foi fazer o jogo da imprensa, alimentando a manipulação.

Do ponto de vista policial, o assassinato de PC Farias não é difícil de entender. Ela foi morto por uma ex-namorada, Suzana Marcolino.

Suzana Marcolino tinha um motivo para matar – PC a tinha trocado por outra mulher, com quem ele passou a noite no Dia dos Namorados de 1996.
PC Farias e Suzana Marcolino

Suzana tinha o meio para matar – ela havia comprado um revólver.

Suzana teve a oportunidade para realizar seu intento – PC, bêbado, estava dormindo quando foi atingido.

Mas Suzana teria se suicidado em seguida?

Ela deixou o que pode ser entendido como um bilhete de despedida, uma mensagem de voz na caixa postal de um dentista com quem havia trocado beijos e carícias dias antes em São Paulo. Suzana ligou duas vezes para ele, que estava numa chácara onde não havia sinal de celular. Na segunda ligação, voz deprimida, Suzana disse acreditar o que dois ficariam juntos no “além”.

Ao escrever a reportagem “Caso encerrado” para a revista Veja, com as evidências de crime passional, foi como nadar contra a corrente.

A Globo tinha inundado a audiência com o espetáculo da queima de arquivo, a Folha de S. Paulo bancou essa tese e a IstoÉ fez do caso uma novela e chegou a citar como fontes taxistas de Maceió que tinham ouvido de passageiros que Suzana tinha sido assassinada por ordem do irmão de PC, Augusto Farias…

Há três anos, fui chamado para depor no julgamento dos seguranças de PC, em Maceió. Dezessete anos depois do crime, eles tinham sido colocados no banco dos réus como envolvidos no assassinato.

Eram quatro PMs que lutavam pela sobrevivência num Estado que paga baixos salários. Um deles, depois da morte de PC Farias, vendia cachorro quente na praia. Outro andava de bicicleta, porque não tinha carro. Se envolveram na morte do tesoureiro, alguma recompensa teriam que ter tido. Mas não. A vida piorou porque não conseguiram mais emprego de segurança. Com o massacre da imprensa, para sempre serão vistos como os seguranças que ajudaram na morte do patrão.

Durante o julgamento, em que prestei depoimento como informante, por ter escrito o livro, o promotor me questionou se eu conhecia a folha tal do processo, que tratava de um detalhe da perícia. Eu disse ao promotor: “Com todo o respeito, em vez de olhar para a folha, olhe para a árvore, olhe para a floresta, olhe para o tudo. Se tomar como base detalhe, isoladamente, você pode chegar a qualquer conclusão.”

Voltei para São Paulo ainda com o julgamento em andamento e soube depois que os seguranças foram absolvidos. Mas isso você não leu na imprensa. A Folha estava lá, a Globo também e a versão que se tornou pública é a de que eles teriam sido indultados. Não foi bem isso que aconteceu. No quesito que perguntava se os seguranças tinham algum envolvimento com a morte de PC, a maioria dos jurados respondeu “não”.

A cobertura que a Globo e a Folha deram ao julgamento, quase vinte anos depois, foi intensa. Estava lá quando soube que o juiz recebeu o telefonema de um produtor da Globo pedindo que estendesse o julgamento até o horário do Jornal Nacional, para que houvesse transmissão ao vivo. Sugestão acatada.

Para muita gente, muitos anos depois, o julgamento não tinha interesse algum, mas ao levantar seu circo no local dos fatos, a mídia que embarcou na teoria da conspiração demarcou território, para tentar assegurar o monopólio da narração.

Termino este artigo com um parágrafo do meu livro:

“Suzana matou PC com uma bala. Com outra, disparou contra o próprio peito. Sobraram três cartuchos intactos no tambor. As balas e o revólver foram apreendidos e, à disposição da Justiça, é improvável que sejam usados novamente. Porém o gesto de Suzana continua produzindo vítimas, não por vontade dela, mas pelas mãos de quem escreve, pela voz de quem narra e pelos que viram que a única maneira de subir no palco da mídia é transformando um crime passional em um caso político. Algumas pessoas parecem não se importar com quantas vítimas fiquem pelo caminho.

Basta!

Como se vê, não bastou.


Sobre o Autor
Jornalista, com passagem pela Veja, Jornal Nacional, entre outros. joaquimgilfilho@gmail.com



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