sábado, 29 de dezembro de 2018

O exílio sem sair de casa. Por Nílson Lage







Para homens e sociedades, querer e acreditar ser constituem pressupostos para ser de fato – porque eles mesmos constroem, em grande parte, dia a dia, a própria realidade. A imagem espontânea que um povo faz de si mesmo – fundada no desejo que reflete experiência histórica – deve ditar o sentido geral que corrigirá desvios e manterá coerência.

Nasci em país católico de um Deus tolerante. Éramos mestiços e orgulhosos da “fusão de três raças tristes”. Nossas mães ou avós, reais ou postiças, as mulheres de que mamamos, que nos embalaram, velaram por nós e nos amaram foram tomadas de povos da terra ou vieram escravas em porões de navios: elas nos legaram enorme capacidade de adaptação e aceitação do outro, o anseio de abraçar o mundo com o carinho que todos os povos merecem e o respeito discreto às diferenças, sem depreciá-las ou exaltá-las.

Definíamos fronteiras entre vidas pública e privada: Oswaldo Cruz, eminente cientista, era mulherengo, Santos Dumont misógino, Mário de Andrade homossexual, Getúlio Vargas recebia Virgínia Lane às terças-feiras à tarde, sem agenda. Protegidos pela discrição, de temas assim só se falava à boca pequena. Qualquer par que vivesse junto era casado; o reconhecimento legal, o rótulo, algo socialmente irrelevante.

Quando nos fizeram quebrar o espelho, perdemos o norte e, com ele, a autoestima e a identidade, porque rumamos sempre para o que, no fundo, rejeitamos: o formalismo, o individualismo, o racismo, a xenofobia, o aguçamento dos conflitos culturais, a repulsa ao diferente e a exibição da intimidade.
O país que se inaugura daqui a dois dias não é mais a minha pátria: é um frankenstein mal costurado, de face estrangeira.

Como chegamos a isso?

Talvez ao aceitarmos a pecha de hipócritas; jogaram-nos no rosto a desigualdade que se agravou com o tempo, porque a riqueza, distribuída sem controle, beneficiou alguns à custa dos demais; deram a ela expressão étnica. No entanto, se nenhum povo é como se imagina, tínhamos passado que nos validava: Machado, Cruz e Souza, Rebouças, venerados sábios e heróis negros, quando não os havia em outra parte; o exército de Cândido Rondon, que não exterminou índios, mas os protegeu; a aspiração constante de igualdade na produção intelectual.

Reduziram nossa História a casa grande-e-senzala, coisa típica dos ciclos da cana-de-açúcar, do café no Sudeste e de algumas culturas regionais, como o algodão. O modelo não se aplica às cidades das Minas Gerais, onde as relações inter-raciais eram mais íntimas e estáveis, ou às periferias urbanas que se formavam: a quase toda Amazônia, ao sertão do ciclo do gado, ao pampa, à Bahia e à maior parte do Nordeste. Com essa distorção suprimiram o índio – não o que preserva a cultura originária, mas o que, em todo o território, está em nós, no que comemos, no que pensamos e, sobretudo, no que sentimos.

Talvez, também, nosso fracasso decorra de termos importado, com alguns dos muitos europeus migrantes que recebemos francamente, arraigadas doutrinas exóticas – fascismo, nazismo, franquismo, salazarismo – que viriam consagrar o autoritarismo das velhas elites e contagiar segmentos importantes dentre os formadores de opinião, principalmente em São Paulo e estados do Sul.

Ou fomos colhidos no processo de substituição do clero aberto à realidade social por hierarquia mais rígida, durante o longo pontificado de João Paulo II; isso abriu espaço à vertiginosa invasão de igrejas corporativas de matriz norte-americana, vorazes por dinheiro, armadas de psicologia comportamentista, declaradamente cristãs mas que se fundamentam no Antigo Testamento para pregar a intolerância e o ódio ao gentio.

São, pois, vários os possíveis motivos de meu país ter-me deixado, virtualmente,apátrida, magoado. Mas tenho certeza de que, por isso ou por aquilo, não soubemos defender nossa preciosa e exclusiva herança.


Tijolaço

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