Sem punição depois do 8 de janeiro, como aconteceu no pós-1964 e no pós-2016, militares seguem como ameaça a uma democracia frágil e fraturada. A propaganda do governo é bem intencionada, mas esconde o impasse em que vive o país
Blindado e tropas do Exército no SMU em 8 de janeiro; general Arruda, ex-comandante do Exército e comandantes atuais com Lula.Créditos: Reprodução / Comando Militar do Leste / Ricardo Stuckert
No fim de semana que antecedeu este 8 de janeiro, um ano da tentativa fracassada de golpe de 2023, vieram a público dúzias de reportagens especiais, entrevistas, balanços e dois documentários (produzidos pela GloboNews e pela Folha). Estes dois últimos apresentaram a mesma revelação bombástica sobre os eventos -no demais, houve bastidores, ângulos e interpretações sem grandes novidades.
A revelação deveu-se a dois personagens centrais no enfrentamento ao 8 de Janeiro, o ainda ministro da Justiça Flávio Dino, em breve ministro do STF e o secretário-executivo do mesmo Ministério e, na ocasião, interventor na Segurança Pública do Distrito Federal, Ricardo Capelli. Nela, descortina-se sem meios tons a insubordinação da cúpula militar ao poder constitucional e sua participação ativa na tentativa de golpe. O relato de Capelli e Dino é chocante. [se quiser, assista o documentário da Folha no trecho dos relatos de Capelli e Dino aqui]
Primeiro, Capelli. Ele contou que depois de os golpistas terem sido expulsos da Praça dos Três Poderes pela PM, no começo da noite, caminharam de volta ao Setor Militar Urbano, onde fica o QG do Exército em Brasília: “Boa parte deles entrou para dentro do Setor Militar Urbano para se refugiar no fatídico acampamento. Lá tinha uma linha da Polícia do Exército que bloqueava a entrada. Quando eu cheguei próximo chamei o coronel Fábio Augusto, então comandante da PM, e disse para ele, ‘coronel prepara a tropa que nós vamos entrar e prender todo mundo’”. [O coronel Fábio Augusto ficou preso de 11 de janeiro de 2022 a 3 de fevereiro de 2023 e é acusado de ser participante ativo ou no mínimo conivente com a tentativa de golpe]
O coronel afastou-se por alguns minutos, falou ao telefone e, sintomaticamente, pouco depois, apareceu diante de Capelli o então comandante militar do Planalto, general Gustavo Henrique Dutra de Menezes. O general afrontou o interventor e, na prática, vetou a entrada das tropas da PM no Setor Militar Urbano, com a advertência de que se tal fosse feito haveria um “banho de sangue”.
Ato contínuo, Menezes informou Capelli que o então comandante do Exército, general Júlio César Arruda, estava convocando-o para uma reunião no QG: “Ele me cumprimenta muito sério, nós subimos para a sala dele, sentamos em uma mesa, onde estavam muitos generais, me parecia praticamente todo o Alto Comando. Assim que eu me sentei, ele se virou para mim e falou, 'o senhor ia entrar aqui com homens armados sem a minha autorização?'. Aí eu falei para ele, ‘general, eu ia lhe informar’; ele se virou para o coronel Fábio Augusto e falou: ‘porque eu acho que eu tenho um pouquinho mais de tropas que o senhor né coronel’”.
A insubordinação prosseguiu e subiu um andar na hierarquia constitucional, do interventor para o ministro da Justiça. Capelli voltou para junto das tropas da PM e, ao chegar Flávio Dino, acompanhado dos ministros José Múcio e Rui Costa, informou-os sobre o que havia acontecido. Os três ministros foram ao gabinete do comandante do Exército. O relato de Dino: “Nós fomos conduzidos para uma sala em que estavam vários militares. E aí eu digo ao comandante: 'Comandante, nós vamos cumprir o que a lei manda'. E ele diz: 'Não, não vão'”.
Em vez de dar voz de prisão ao comandante militar insubordinado, os ministros de Lula sentaram-se para negociar e ficou acordado que a PM entraria no Setor Militar ao amanhecer do dia 9, o que de fato aconteceu. Prenderam-se mais de mil pessoas, todos “bagrinhos”. Uma revelação lateral, mas que desvenda o motivo de a tropa militar servir como guarda pretoriana para os golpistas entrincheirados diante do QG, foi a do ministro da Defesa, no documentário da Folha: “Negociou-se que às 6 horas da manhã ele podiam vir buscar as pessoas porque nós sabíamos que ali tinha gente ligada aos militares” A noite do dia 8 e madrugada do dia 9 garantiram que todas as pessoas ligadas aos militares pudessem escapar, sob a proteção das tropas.
O relato de Múcio contradiz as diversas declarações que deu ao longo de 2023 e reafirmou em uma entrevista a O Globo publicada no dia 5: “Eram senhoras, crianças, rapazes, moças... Como se fosse um grande piquenique, um arrastão em direção à Praça dos Três Poderes.” O ministro defendeu os acampamentos diante dos quartéis em 2022 e manteve a posição ao longo de 2023, sob a alegação (falsa), apoiada pela narrativa bolsonarista, de que seriam “senhoras, crianças, rapazes”. Ele chegou a informar que havia familiares seus no acampamento de Recife.
Os acampamentos diante dos quartéis e do QG do Exército de Brasília foram a gênese do 8 de janeiro. Foram eles que estabeleceram laços entre os golpistas, selaram relações, alimentaram projetos, articulam redes de apoio. Tudo isso com apoio dos generais. Todos os acampamentos espalhados pelo país tiveram apoio do comando militar: banheiros químicos, água, segurança e até discursos de militares graduados nas concentrações. Não houve qualquer tentativa de desmobilizar os acampamentos golpistas; ao contrário, eles contaram com incentivo mais ou menos escancarado dos comandantes. Familiares de militares da ativa pululavam nas concentrações; em Brasília, uma das “estrelas” era Maria Aparecida Villas Bôas, mulher do ex-comandante do Exército, general da reserva Eduardo Villas Bôas, líder fardado do golpe contra Dilma em 2015-16 e da ilegal prisão de Lula em 2018.
Sem punição e fortalecidos, de novo
Tanto o governo como o STF e o Congresso indicam que os comandantes militares não serão punidos. Repete-se o que aconteceu no pós-1964 e no pós-2016. E, sem punição, os militares retornam à sua atividade precípua no Brasil: conspirar contra a democracia.
Em vez de enfraquecidos, eles saem da crise em rota de fortalecimento, favorecidos por uma cúpula institucional acovardada ou, em alguns casos, interessada em eventuais parcerias mais adiante, como se viu no passado.
2023 foi pródigo em indicações do fortalecimento militar:O governo engavetou a PEC de iniciativa do deputado Carlos Zarattini (PT-SP) que acenava, pela primeira vez, com um regramento ao poder militar. Pelo texto, iriam para a reserva os militares que assumissem cargos públicos; acabaria a operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO); seria modificada a redação do artigo 142 da Constituição que é interpretada pelos militares como atribuição de um poder moderador às Forças Armadas, acima dos três poderes.
Apesar da promessa na campanha eleitoral, o presidente Lula não reinstalou a Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos. A medida chegou a ser incluída no relatório de transição como prioridade a ser implementada nos primeiros três meses do governo.
O governo engavetou também projeto de lei que acabava em definitivo com as pensões para filhos e filhas de militares – hoje válidas para quem começou a receber o benefício antes de 2000.
Além disso, tem apoio de líderes do governo uma emenda constitucional que visa garantir ao Ministério da Defesa 2% do Produto Interno Bruto (PIB) a ações de defesa nacional, que ficam sob a alçada do Ministério da Defesa. Isso no exato momento em que o Ministério da Fazenda articula o fim dos pisos constitucionais da Educação e Saúde.
O ato convocado pelo presidente Lula para este 8 de janeiro foi batizado pelo governo com o bem intencionado título de “Democracia inabalada”. Mas, sem qualquer perspectiva de punição aos militares envolvidos na tentativa de golpe, o país está longe de ter uma democracia “inabalada”. Trata-se de uma democracia sob ameaça militar e fraturada.
Revista Fórum
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