“Como Lula irá lidar com os militares, se eles trocaram um presumido projeto de nação, que só se explicitou mesmo no período 1964-85, por bons empregos no governo de Bolsonaro?”, questiona o jornalista Moisés Mendes
19 de novembro de 2021
O coronel Roberto Carlos Brunello escapou do cerco da polícia e da Justiça argentinas durante décadas. Fugia como um rato. Mas na Argentina os ratos da ditadura são caçados até hoje.
Brunello foi preso no início deste mês na Grande Buenos Aires. Era procurado por crimes de lesa humanidade cometidos por um grupo da inteligência do Exército que assassinou centenas de pessoas. Ele é acusado de sequestrar, torturar, matar e estuprar.
Brunello fez na ditadura o que muitos fizeram no Brasil, mas aqui todos os que ainda estão vivos continuam soltos e sob a proteção de uma anistia referendada integralmente pelo Supremo. É o que, entre outras coisas, nos diferencia dos argentinos.
Enquanto eles ainda caçam torturadores, aqui Bolsonaro os elogia e ainda propõe a retomada do debate foi-ou-não-foi-golpe, e muita gente embarca na pauta do sujeito.
Na Argentina, foi um policial federal que prendeu Brunello. No Brasil, foi um policial federal que entrou numa sala fechada onde eram elaboradas as provas do Enem.
O emissário do governo fez sabe-se lá o quê, porque sua presença é tratada como segredo em processo interno do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep). Mas o policial não foi tomar cafezinho nem propor uma questão sobre o uso da crase.
Na Argentina, seria impensável que um general pudesse sugerir, em nome de qualquer interesse, que o início da vacinação contra a Covid-19 fosse retardado, enquanto a peste tomava conta do país.
No Brasil, um general orientou uma autoridade civil eleita a tentar forçar outra autoridade também civil e eleita a trancar o começo do processo de imunização com a CoronaVac.
Foi o que o general Luiz Eduardo Ramos fez ao transformar o governador gaúcho Eduardo Leite em guri que deveria levar o recado ao colega tucano João Doria.
Aconteceu em janeiro, quando a Covid matava 960 brasileiros por dia, e só ficamos sabendo do recado agora, às vésperas das prévias em que Leite e Doria disputarão a indicação do partido à eleição do ano que vem.
Um governador fraco, eleito com o apoio do bolsonarismo e como eleitor de Bolsonaro, sem força política para dizer não, foi escolhido por um general de Bolsonaro para transmitir um aviso que talvez poucos políticos eleitos e de fora do esquema de Brasília topassem levar adiante.
No Brasil, onde Bolsonaro deseja que o golpe seja tratado como revolução, um ministro do Supremo, mais cuidadoso, já recomendou que o golpe passasse a ser visto como um “movimento”.
O ministro Dias Toffoli era presidente da Corte quando fez a recomendação, em 2018. E tinha como assessor especial o general Fernando Azevedo e Silva, escolhido depois como ministro da Defesa de Bolsonaro.
Azevedo e Silva, que enxerga nas sombras de Brasília o que outros militares não conseguem ver, teve a grandeza de se afastar dos blefes golpistas de Bolsonaro. Saiu em março e levou junto para fora do governo os chefes das três armas.
A volta da falsa controvérsia do foi ou não foi golpe só denuncia nossa submissão ao que a extrema direita impõe ao país, porque o ambiente todo está militarizado. Há medo e há também acovardamento.
Esse é um dos desafios para Lula, na caminhada que pode levá-lo a mais uma consagração em 2022. Lula saberá lidar com as alianças e as coalizões, com os ímpetos imorais do centrão, com banqueiros, lavajatistas arrependidos, latifundiários, com a Fiesp e com os golpistas que derrubaram Dilma.
Mas como irá lidar com os militares, se eles trocaram um presumido projeto de nação, que só se explicitou mesmo no período 1964-85, por bons empregos no governo de Bolsonaro?
Como aqui o Ministério Público e a Justiça não conseguem enquadrá-los, ao contrário do que argentinos, chilenos e até uruguaios ainda fazem com os criminosos de lesa humanidade, que pelo menos sejam contidos e limitados aos seus deveres constitucionais.
Devolver os militares aos quartéis é a urgência mais complicada na hora de fazer o Brasil voltar ao normal, como diz o ex-chanceler Celso Amorim, referindo-se ao esforço pela reestruturação de corpo e alma de um país destruído.
É mais complexo do que consertar a economia, gerar empregos, socorrer pobres e miseráveis, controlar juros e inflação e transmitir confiança ao povo e aos investidores.
Militares fazem hoje o que nunca fizeram nem na ditadura. Cabos e soldados sabem que Castelo Branco, Médici, Geisel e Figueiredo permitiram muitas arbitrariedades, mas jamais permitiriam que coronéis trabalhassem para facções criminosas de atravessadores de vacinas.
A conversa do foi ou não foi golpe é parte do truque das pautas motivacionais, que serão intensificadas em 2022. Bolsonaro quer manter a base civil agitada, a partir de afagos à sua base militar bem empregada e resignada.
O golpe é, desde a barbeiragem do 7 de setembro, um objetivo cotidiano de aparelhamento de todos os espaços institucionais, de preferência com policiais e militares.
O desmonte dessa estrutura pode ser uma longa missão para a democracia, que Lula irá apenas iniciar.
Brasil 247