terça-feira, 2 de agosto de 2016

Lula: 'Nem a Coca-Cola subestima a comunicação'



Ilude-se ao ponto da irresponsabilidade o governante que ainda acredita vencer o cerco neoliberal apenas com boa gestão econômica.

por: Saul Leblon


O prefeito Fernando Haddad cortou em 50% os gastos com a divulgação do seu governo nos quatro anos em que dirigiu a prefeitura da maior cidade do país.

Foi repreendido por Lula na convenção que homologou seu nome à reeleição de São Paulo, no último domingo.

O povo brasileiro não tem obrigação de saber’, disse Lula e sapecou: ‘O prefeito cometeu um pecado ao não investir em divulgar a gestão; achando que é obrigação do povo saber; achando que já é conhecido; ledo engano; fosse assim’, concluiu, ' a Coca-Cola, que todo mundo já conhece, não faria propaganda. E ela faz’.

A advertência de Lula aborda, indiretamente, aquele que é o maior obstáculo à superação da encruzilhada brasileira atual

A inexistência real de espaço de comunicação para se debater e escrutinar as bases de um novo ciclo de desenvolvimento.

Não é propriamente uma novidade na vida do país.

Mas a forma ostensiva como isso se reafirmou agora, em um momento em que a sociedade enfrenta provas cruciais para decidir se avança ou regride em conquistas e direitos civilizatórios, repôs o tema em um novo patamar.

O episódio recente do Datafolha condensou esse debate com as cores berrantes de um sinal de alarme explícito e ineditamente pedagógico de manipulação da opinião pública. 

Se a ficha caiu, como sugere a preocupação de Lula na convenção municipal do PT, o passo seguinte é assumir a prioridade sempre adiada nos últimos anos.

Ademais de lutar na esfera constitucional pela pluralidade do sistema de comunicação, de modo a quebrar a espinha dorsal do monopólio emissor, não se pode mais evocar a resistência conservadora para justificar a acomodação protelatória.

Não investir em comunicação –ou investir mal, justamente no algoz—é, como disse Lula, um pecado mortal.

Todas as disputas eleitorais, em todos os níveis, deveriam incluir, a partir de agora, propostas concretas que antecipem a superação dessa asfixia mitigando-a no plano local, municipal, estadual ou regional.

As eleições municipais deste ano transcorrem em um ambiente político talhado para marcar o fim dessa fuga para frente.

Plataformas e programas democráticos tem o dever de incluir no capítulo referente à comunicação, como pede Lula, o compromisso de fortalecer canais alternativos, como medida de resistência ao golpe –seja qual for o resultado do impeachment, bem como de fomento a blogs e sites que constituem um universo pronto de micro e pequenas empresas com expertise em furar o cerco da emissão dominante.

Recorrer aos veículos alternativos e aos canais públicos não pode mais ser encarado como a alternativa do desespero.

Chegou a hora de cogitá-la como a resposta da sensatez. 

Não por acaso, a primeira medida do golpe na esfera da comunicação foi desfechar uma operação asfixia contra os veículos alternativos, cortando 100% da já ínfima publicidade estatal destinada a eles ( veja: https://www.youtube.com/watch?v=9_bViEGUVyo)

Uma iniciativa prática consiste em pactuar a destinação de 50% da verba publicitária municipal para a difusão de informações de interesse público através desses veículos.

Justifica-o o viés oligopolista que condiciona toda a qualidade da comunicação oferecida hoje à sociedade.

Se ainda havia alguma dúvida quanto a esse papel restritivo, a última pesquisa do Datafolha cuidou de afasta-la.

Para induzir a opinião pública e encorajar o Senado a aceitar a ruptura constitucional como fato consumado, o instituto de pesquisa da família Frias omitiu um recorte decisivo da consulta levada a campo sobre a crise brasileira.

Como sabido, graças ao arguto questionamento feito pelo jornalista Glenn Greenwald em seu site The Intercept, o veículo dos Frias sonegou à nação uma referência decisiva.

Havendo a possibilidade, 62% dos eleitores preferem voltar às urnas e escolher um novo presidente da República como solução para a crise em que mergulha o país.

Subjacente a essa disposição, de forma elaborada ou intuitiva, encontra-se a sensata compreensão do que está em jogo. 

Ou seja, de que só o escrutínio de um novo pacto de desenvolvimento, ancorado em ampla maioria, poderá superar o perigoso areal de descrédito e fragmentação política, que ora ameaça jogar o Brasil num longo hiato de exceção política, regressão social e deriva econômica.

Foi justamente a compreensão desse risco, intrínseca à manifestação de 62% do eleitorado-- que o jornal da família Frias sonegou à sociedade.

Preferiu semear o falso ambiente de virada na economia e no clima político, para gerar um efeito manada capaz de empurrar o Senado Federal ao matadouro da democracia, sacramentando o impeachment.

Se o nome disso não é manipulação será preciso criar um neologismo mais forte.

Em decisão criticada até pela ombudsman da Folha, o editor-executivo do jornal, Sérgio Dávila, defendeu a legitimidade dos pontapés desferidos na isenção com dois argumentos de cano alto, a saber:

a) que o jornal dos Frias tem a prerrogativa de enfatizar o que bem entender dos resultados de uma pesquisa;

b) que na opinião do jornal dos Frias o desejo de mais de 60% da população por eleições presidenciais deixou de ser tema pertinente, dado o novo quadro político nacional.

Qual? 

O quadro da falsa consolidação do golpe, induzida pela manipulação da pesquisa do Datafolha.

A tautologia remete à pergunta de incontornável abrangência.

Se a Folha manipula de forma tão abusada uma pesquisa de opinião, o que não fará seu editor-chefe en petit comitê, nas escolhas de pautas, na edição das notícias, na destinação dos espaços, na hierarquização das manchetes, na filtragem das garrafais apresentadas como referencias isentas à opinião pública?

Cumpre recordar, porque muitos teimam em esquecer.

Foi esse mesmo poder autorreferente que levou o Jornal Nacional em 1989 a cometer uma edição do debate Lula X Collor que prefabricou a vitória do então ‘caçador de marajás’, contra o ‘despreparado’ torneiro mecânico do ABC. 

Note-se: isso aconteceu na cobertura de uma eleição histórica, a primeira disputa presidencial livre e democrática que marcou o fim da ditadura militar. 

A Globo editou o debate duas vezes. Até deixá-lo 'ao dente' para ser exibido no Jornal Nacional.

As falas do petista foram escolhidas entre as intervenções mais fracas; as do oponente, entre as melhores, com um adicional de um minuto e oito segundos de tempo sobre seu adversário.

Antes do debate a diferença de votos entre os dois era da ordem de 1%, a favor de Collor, mas com um oponente em escalada irresistível, na antessala de uma virada histórica.

Depois do cinzel da Globo, Collor venceria com quase 50% dos votos; Lula teve 44%. 

As consequências desastrosas do fruto dessa maquinação no exercício do poder são sabidas. 

Amplamente conhecidas também são as réplicas desse sismo nos capítulos posteriores das disputas pelo comando do desenvolvimento brasileiro.

Elas se fizeram notar mais uma vez em 2002, na retunbante vitória de Lula contra Serra; catalisaram a crise de seu governo em 2005 --quando se ensaiou um movimento de impeachment generosamente acolhido pelo dispositivo midiático conservador; atuaram no levante contra a reeleição de Lula em 2006; agiram ostensivamente na campanha contra Dilma, em 2010; atacaram Fernando Haddad em 2012 com o cerco do chamado ‘mensalão’; chegaram ao paroxismo da histeria em 2014, após a reeleição da Presidenta Dilma, contra todos os prognósticos.

A indevida interferência avulta agora como elemento central do processo golpista em curso no país.

Há sofreguidão de revide; um clima de 'agora ou nunca' a orientar o linchamento midiático contra Lula, contra Dilma, contra o PT, em sintonia com o calendário desfrutável da partidarização da Lava Jato pelas mãos do carimbado juizado de Curitiba.

O país não avançará nas transformações econômicas e sociais requeridas pela desordem neoliberal dominante no mundo, e nenhum projeto de democracia social vingará, mantendo-se o poder de veto que o dispositivo midiático conservador logrou monopolizar entre nós.

O que nos reservam os Frias e seu instituto de pesquisas; Moro e sua cavalaria; os Marinhos e seu Jornal Nacional para a véspera da votação do impeachment no Senado?

Alguma dúvida?

Há alguma coisa de profundamente errado com um país quando, a cada divisor político, o centro das atenções desloca-se do embate propriamente dito de ideias, para a 'emboscada da mídia’, que ademais de induzir o curso dos acontecimentos, reserva-se o direito de desferir a bala de prata da véspera. 

O aquecimento recente protagonizado pelo Datafolha confirma essa aflitiva tradição nacional. 

Não há nela qualquer traço de fobia persecutória.

Os antecedentes, como se viu, são abundantes a ponto de justificar a certeza de que vão se repetir. 

A superação dessa usina de consenso asfixiante não se dará exclusivamente na esfera econômica.

Ilude-se ao ponto da irresponsabilidade suicida o governante que ainda acredita ser possível superar o colapso mundial do neoliberalismo apenas no plano econômico.

O pecado de não investir corretamente em comunicação, como diz Lula, nem a Coca-Cola comete.

A verdade é que a interdição do debate do desenvolvimento representa hoje um dos ingredientes constitutivos da crise e um poderoso indutor de seu desfecho regressivo.

Para romper esse torniquete, partidos e forças que reúnem agendas progressistas e democráticas tem a obrigação de dar o exemplo prático em cada trincheira de gestão pública conquistada.

Sozinho, o PT administra desde 2012 o maior contingente de eleitores de todo o país (1/5 do total).

Não só: detém ainda a maior fatia de orçamentos municipais (22%). 

Em São Paulo, governa 45% do eleitorado do Estado de SP, contra 19,3% do PSDB. 

Pergunte-se: em quantas gestões petistas houve uma política oficial de fortalecimento de canais de comunicação progressista com a sociedade local?

A resposta está implícita na quase inaudível resistência das mídias locais ao alarido golpista nacional.

O novo pleito municipal abre uma longa avenida para a expiação desses erros.

É quase tarde. E por isso mesmo inadiável.

O cardume subsiste numeroso. O que se discute é outra coisa: a qualidade, a força e a direção do impulso que irá dotá-lo de fôlego transformador nos próximos anos. É disso que se trata. E isso é muito mais sério do que as cambalhotas da razão nos tanquinhos de areia do dispositivo midiático conservador.



Carta Maior

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