8 de Setembro de 2018
Por Paulo Moreira Leite
A facada de Juiz de Fora assegura a Jair Bolsonaro os benefícios daquilo que os estudiosos de Ciência Política definem como paradoxo democrático. A expressão parece complicada mas descreve uma situação real. Baseados em princípios de valor universal, os regimes democráticos garantem também a seus inimigos os mesmos direitos e prerrogativas reservadas a aliados leais e responsáveis, liberando oxigênio inclusive à forças que trabalham por sua destruição.
Por essa razão, os partidos e candidatos repudiaram a facada, mesmo aqueles que consideram que Bolsonaro lidera um partido fascista, que busca chegar ao poder com a perspectiva de atacar liberdades públicas e diminuir direitos sociais e individuais -- sejam direitos de trabalhadores, a aposentadoria, os direitos das mulheres, o respeito à população negra, ao mundo LGBT.
Este comportamento é expressão do paradoxo democrático. A base para se condenar a facada é a compreensão correta de que a tolerância diante de um ato de violência dessa natureza -- contra qualquer candidato, de qualquer partido -- pode funcionar como estopim para a transformação da campanha eleitoral numa disputa descontrolada e violenta, ideal para aqueles que não tem voto em urna, desprezam a democracia e estão em conspiração permanente para construir regimes de força.
Cabe reconhecer, em análise política, que a facada ocorreu num momento preciso da campanha do capitão-candidato.
Como acontece com tantos candidatos de sua categoria, em várias partes do mundo, ao menos até agora Bolsonaro parece capaz de reunir apoio suficiente para chegar ao segundo turno. A dúvida é se, na segunda fase, teria fôlego para realizar um pesadelo político horrendo, conquistando a maioria dos votos.
Antes da facada, boa parte dos analistas acreditava que Bolsonaro já se encontrava no teto de crescimento, condenado a ficar emparedado por fatores adversos. Um deles é o minúsculo tempo de TV, cuja contrapartida é artilharia adversária, ideal para barrar a conquista de novas faixas do eleitorado. Outro ponto é que, na fase atual da campanha, as objeções à sua candidatura ganharam tamanho volume que já chegavam aos centros financeiros internacionais. Recentemente, a principal porta-voz deste universo que desfruta de poderes únicos, a revista britânica Economist, definiu Bolsonaro como "ameaça à democracia".
No Brasil, as simulações demonstram que, num segundo turno, Bolsonaro perde para todos os candidatos com chances reais de passar a segunda fase. Só crava um empate técnico com Fernando Haddad, cuja candidatura a presidente sequer foi registrada oficialmente até agora. Quando os eleitores são informados de que Haddad é o candidato de Lula, diz o Ibope, seu eleitorado potencial pode chegar a 39%.
Neste ambiente, a esperança de Bolsonaro recrutar novos eleitores junto ao chamado povão apoia-se menos no debate de ideias e no confronto de opiniões. Neste ponto, no qual os brasileiros aguardam sugestões para tirar o país do atoleiro econômico em que foi mergulhado pela gestão de Temer-Meirelles, sua cartilha não ajuda e até atrapalha.
Referindo-se ao tema essencial de interesse da imensa maioria de brasileiros e brasileiras, que enfrentam um desemprego recorde, pobreza contínua e nenhuma perspectiva de crescimento, o guru econômico Paulo Guedes cometeu um sincericídio sob medida para empurrar possíveis eleitores para outras candidaturas.
Referindo-se ao desempenho de um governo reprovado por 94% da população, Paulo Guedes admitiu em entrevista a Globo News que o projeto de Bolsonaro é "fazer aquilo que o Temer vem fazendo". Sabemos que a imensa maioria dos eleitores não presta atenção nos detalhes dos programas econômicos dos candidatos. Desconfia. Não tem paciência. Não entende aquilo que costuma ser apresentado de forma a que nada se possa compreender.
Mas todos prestam atenção nas sínteses mais expressivas. A promessa de quem Bolsonaro pretende "fazer aquilo que o Temer vem fazendo" é, desse ponto de vista, inesquecível para quem está preocupado com a falta de dinheiro no bolso.
Mesmo em gabinetes de empresários e banqueiros, as ideias de Bolsonaro/Guedes para a economia seduzem menos do que se poderia imaginar.
Zeina Latif, economista-chefe da XP Investimentos, a instituição financeira da moda, acaba de publicar um artigo no qual faz um diagnóstico demolidor das ideias em curso. (Estado de S. Paulo, 6/09/2018). Falando do ponto de vista de quem é totalmente a favor da venda de estatais, na linha do quanto mais melhor, Zaina Latif diz que o centro do projeto envolve propostas "inviáveis do ponto de vista econômico" e politico. Avalia que as "contas para zerar o déficit público não fecham e requerem medidas que dependem de aprovação do Congresso", inclusive porque algumas são inconstitucionais. Diz ainda que nem as "promessas" de "eliminação do déficit orçamentário em 2019" nem a "reforma da Previdência com implementação do regime de capitalização" são "críveis".
É muito possível que as manifestações -- corretíssimas -- de repúdio à facada, acabem por criar um ambiente menos negativo (ou mais positivo, conforme a vontade do freguês) em torno do personagem Bolsonaro.
As imagens na mesa de cirurgia, os depoimentos dos médicos, definem uma vítima, contribuindo para a criação de um sentimento de solidariedade que os aliados de Bolsonaro já se empenham em transformar em vitamina política para ganhar mais votos.
"Acabaram de eleger o presidente, vai ser no primeiro turno", reagiu o deputado estadual Flavio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do candidato."Agora é guerra", disse o chefe de campanha, Gustavo Bebbiano.
Talvez o militar mais influente no círculo da campanha de Bolsonaro, o general da reserva Augusto Heleno avançou em alta velocidade.
Contrariando tudo o que se sabe até agora sobre Adelio Bispo de Oliveira, o desempregado que disse ter dado a facada "a mando de Deus", o general definiu o agressor nos seguintes termos: "É um radical irresponsável, fiel a seus ideais marxistas".
O general também acusa "parte da imprensa" pela facada. Descrevendo um enredo imaginário com começo, meio e fim, ele diz que "o bárbaro atentado é o desfecho de uma campanha diária, obstinada, que parte da imprensa desencadeou contra ele".
Augusto Heleno chega a reclamar que Bolsonaro foi tachado "injustamente", de "despreparado, violento, inimigo da pátria e amante da ditadura. É um vale tudo para desconstruí-lo". Lembrando que todos têm direto a liberdade de pensamento, um número considerável de brasileiros e brasileiras concorda inteiramente com essas opiniões que o general considera injustas -- e ninguém pode querer obrigá-los a pensar desse modo.
No horizonte pós-facada, o esforço da campanha de Bolsonaro é construir um laço afetivo com o eleitorado, pela vitimização, transformando o repúdio necessário a uma agressão em forma apoio politico. Este é o jogo daqui para a frente.
A dificuldade é acreditar na eficácia de uma mudança tão brusca, semelhante à troca de personalidade, no estabelecimento de outra língua para conversar com o eleitor.
O político que se apresentava como o agressor tentará seguir na campanha como o agredido. Lembrando a fábula, no meio da história o Lobo quer vestir pele de Cordeiro?
Na minha opinião, o problema é politico. A distância entre a imagem e os fatos é grande demais.
Não precisamos remontar a pré-história dos pronunciamentos e gestos de Bolosonaro. Para quem assistiu a um vídeo do candidato falando sobre maldade dos homens, impossível deixar de recordar a homenagem insultuosa prestada ao coronel da tortura, Ustra, na votação do golpe que derrubou Dilma Housseff.
Mas há exemplos recentes, na própria campanha, que ajudam a entender a dificuldade da metamorfose.
No sábado, 1 de setembro, cinco dias antes da facada, Bolsonaro subiu ao palanque em Rio Branco com uma metralhadora de brinquedo na mão para "fuzilar a petralhada aqui do Acre", estado governado por Tião Viana, que é do PT, partido que, através de Haddad-Lula, projeta-se como seu principal adversário na campanha presidencial.
Em 28 de agosto, na sabatina do Jornal Nacional, Bolsonaro fez uma defesa reforçada do golpe de 64, lembrando um editorial da época no qual o Globo sustentava a deposição de um presidente constitucional pela força. Quando os entrevistadores recordaram editorial das Organizações Globo que, em 2013, fez autocrítica pelo apoio à conspiração militar, Bolsonaro retomou a palavra para dizer que discordava da retratação e manifestou apoio à atuação da Globo em 1964.
Alguma dúvida?
Brasil 247
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