sexta-feira, 7 de maio de 2010

De Dani Tristão - Uma homenagem merecida a João Cândido

A homenagem a João Cândido é mais do que justa.

Poucos conhecem as histórias dos nossos heróis negros. João Cândido foi um grande herói da revolta da chibata.

Vale a pena a leitura para entender o porquê da homenagem a João Cândido. (Retirado do sítio: http://www.projetomemoria.art.br/ )







No dia 21 de novembro, o marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes recebeu a notícia: seria açoitado com 25 chibatadas. E o ritual teve início no convés do Minas Gerais, com a toda a tripulação de pano de fundo. Apesar dos apelos, as chibatadas não pararam no número 25, continuaram e continuaram. Menezes desmaiou. O açoite, no entanto, prosseguiu. Foram 250 chibatadas. Ao fim do tormento, o marinheiro foi “embrulhado” em suas vestes e levado para a enfermaria. A conspiração estava pronta. O comitê geral de marinheiros decidiu pelo sinal: a chamada da corneta. Na noite do dia 22 de novembro, como relatou João Cândido a Edmar Morel, o clarim não pediu silêncio e sim combate. A cidade do Rio de Janeiro, capital da República, estava na mira dos canhões, incluindo-se o Palácio do Catete, sede do governo.

Após o início da revolta, Menezes foi levado ao hospital da Marinha pelo deputado federal pelo Rio Grande do Sul e capitão da Marinha, José Carlos Carvalho, que subiu a bordo do Minas Gerais para conversar com os revoltosos. Em seu relato ao presidente da República, marechalz Hermes da Fonseca, José Carlos Carvalho escreveu: “mandaram vir à minha presença uma praça que tinha sido castigada de véspera. Examinei-a e trouxe-a comigo para terra (...) senhor presidente, as costas desse marinheiro assemelhavam-se a uma tainha lanhada para ser salgada”.



No dia 22 de novembro de 1910, a cidade do Rio de Janeiro, a Capital da República, estava na mira dos canhões de uma das três mais modernas e equipadas esquadras do mundo. Os navios de guerra dançavam com leveza e graça nas águas da baía da Guanabara. A exibição de competência e elegância das manobras ia de encontro com a imagem rude e bruta dos marinheiros brasileiros, como escreveu José Murilo de Carvalho, autor de Pontos e Bordados. Escritos de História e Política. Comandando os navios, João Cândido e seus companheiros eram timoneiros que sabiam o valor da profissão e exibiam aos cariocas o que haviam aprendido na Marinha de Guerra.

Conta-se que o presidente marechal Hermes da Fonseca assistia à ópera Taunhauser, de Wagner, quando o primeiro tiro de canhão vindo do mar sacudiu a cidade. Logo seguiu-se um outro estrondo, vidraças foram quebradas. A população não se deu conta do que estava acontecendo. Os meios de comunicação ainda eram poucos. No governo, no entanto, o ar era tenso e procuravam-se responsáveis pelo levante. O almirante Alexandrino de Alencar foi o primeiro a levar a culpa pelos acontecimentos de 1910. Oito dias antes ele havia deixado o Ministério da Marinha. A hipótese logo foi descartada, Alencar estava a bordo de outro navio, um transatlântico, viajando para Europa. Enquanto em terra procuravam-se nomes, nos navios a situação era clara. João Cândido era o comandante. Do Minas Gerais, chamou os outros navios: o São Paulo, o Bahia e o Deodoro. Com um apito e uma velha espada, bradava ordens aos companheiros, tentava conter os ânimos e dar voz à revolta há muito entalada na garganta. A primeira mensagem de rádio chegou claro e ameaçador ao Palácio do Catete, sede da presidência da República. “Não queremos a volta da chibata. Isso pedimos ao presidente da República, ao ministro da Marinha. Queremos resposta já e já. Caso não tenhamos, bombardearemos cidade e navios que não se revoltarem. Guarnições Minas, São Paulo, Bahia”. O navio Deodoro ainda não tinha respondido o chamado.

A noite foi tensa, houve luta no convés, e a manhã foi de realidade. A população do Rio de Janeiro pôde, então, ver os navios de guerra desfilando pela Guanabara, evoluindo com maestria entre as ilhas Fiscal, das Cobras e Villegagnon com bandeiras vermelhas tremulando. A cor mostrava que a embarcação estava rebelada e convocava os marinheiros para a luta. Os corpos dos mortos em combate foram depositados no cais. Entre os abatidos estavam o comandante do Minas Gerais, capitão de mar e guerra João Batista das Neves, o capitão-tenente José Cláudio da Silva, o primeiro tenente Mario Alves de Souza, o primeiro tenente Mário Lahmayer e o primeiro tenente Américo Sales de Carvalho – este último suicidou-se. Dentre os muitos marinheiros feridos, estima-se que dois morreram nos confrontos com os oficiais. Nos navios, como relatou João Cândido ao jornalista Edmar Morel, seguiu-se a rotina de uma embarcação em guerra. Os líderes, no entanto, tomaram medidas que chamaram a atenção. Mandaram atirar no mar as bebidas armazenadas nos navios, ordenaram que sentinelas guardassem caixas de valores e os camarotes dos oficiais, nada deveria ser violado. De toda a esquadra, os revoltosos apropriaram-se de quatro: o Minas Gerais, o São Paulo, o Bahia e o Deodoro. As operações foram centralizadas, a tripulação de outras embarcações também rebeladas foram acolhidas nos quatro navios. O momento carecia de reforços. Os comandos foram delegados a marinheiros experientes. No poderoso São Paulo, Gregório do Nascimento.

Aflito e procurando uma solução, o governo do marechal Hermes da Fonseca mandou a bordo dos encouraçados o comandante da Marinha, José Carlos Carvalho, que conversou com os revoltosos e levou subsídio às equipes de terra para o início das negociações. A bordo do São Paulo, encontrou certezas: “navios poderosos como estes não podem ser tratados, nem conservados, por meia dúzia de marinheiros que estão a bordo. O trabalho é redobrado, a alimentação é péssima e mal feita e os castigos aumentaram desbragadamente. Estamos em um verdadeiro momento de desespero. Não nos incomodamos com o aumento dos nossos vencimentos, porque um marinheiro nacional nunca trocou por dinheiro o cumprimento de seu dever e os seus serviços à Pátria”. A declaração partiu de um marinheiro da guarnição que recepcionou José Carlos Carvalho. Em terra, a população estava assustada com os acontecimentos. Famílias inteiras deixaram o Rio de Janeiro temendo um bombardeio. Para testar os revoltosos, a Marinha tinha soltado uma nota dizendo que mandaria torpedear os navios rebelados. Seria uma guerra. Os marinheiros responderam pelo rádio ao povo e ao governante da nação. À população, pediam que olhassem a causa com simpatia, pois nunca tiveram o intuito de atentar contra as vidas do povo trabalhador. Ao presidente da República, lamentavam o acontecimento, diziam que eram simpáticos ao marechal Hermes da Fonseca e reforçavam seus pedidos para o fim da chibata.





A revolta da esquadra brasileira repercutiu no mundo inteiro. Os jornais comparavam-na com a do encouraçado Potemkin. Na Rússia, era apenas um navio rebelado, 500 marinheiros. No Brasil, eram cerca de 2.300 marujos e quatro navios. A grandiosidade do evento e o temor de que o proletariado pudesse se inspirar nos marinheiros fez o governo brasileiro romper a anistia em poucos dias, fuzilar e colocar na prisão os marinheiros rebelados.



As constantes críticas da imprensa à Revolta da Chibata favoreceram a repressão contra os marujos. A realidade inverteria o sentido desta charge, na qual o marinheiro negro é apresentado como violento.



O primeiro passo do governo foi separar a marujada, transferindo parte para servir em terra e mudando homens para outros navios. Quando o clima ficou estranho e João Cândido e outros líderes tentaram reunir os comitês, não mais conseguiram. Grupos de ex-revoltosos tentaram visitar senadores, mas não foram recebidos. A tensão aumentava. João Cândido ralhava com os companheiros de revolta, discordava do grupo. Dizia que era preciso confiar no governo, que isso era um desrespeito, que eles eram cidadãos livres, anistiados. Porém, um decreto de 28 de novembro fez o pânico aumentar entre os marinheiros. A partir dessa data, a Marinha brasileira podia excluir do seu corpo de marinheiros os marujos “cuja permanência se tornara inconveniente à disciplina”. Os navios ficaram sem gente. Era início de dezembro e marinheiros eram presos em diversos lugares do Rio de Janeiro, acusados de conspiradores. Uma verdadeira caça às bruxas. As prisões da Ilha das Cobras ficaram cheias. Surgiu uma nova revolta no dia 9 de dezembro. O palco era o Batalhão Naval. Os navios, antes rebelados, aguardavam ordens para combater os novos rebeldes. A bandeira branca foi hasteada na base rebelde, na Ilha das Cobras, mas mesmo assim a ilha foi bombardeada. Na manhã do dia 10 de dezembro, ao desembarcar de uma lancha, no cais, João Cândido foi preso. Outros marujos também foram encarcerados. A justificativa: “tinham largado o Minas Gerais sem licença”.

Após a voz de prisão, João Cândido e outros líderes da revolta foram levados para o Quartel Central do Exército. Ficaram incomunicáveis. O governo tinha decretado Estado de Sítio, e prisões eram feitas por todos os cantos. Parlamentares desconfiaram da manobra do Palácio do Catete, mas era tarde. João Cândido foi mandado para a prisão da Ilha das Cobras para viver o pior episódio de sua vida. No dia 24 de dezembro de 1910, noite de Natal, ele e mais 17 marinheiros foram trancafiados numa prisão subterrânea e lá quase todos encontraram a morte – só João Cândido e João Avelino Lira, marujo apelidado de Pau da Lira, sobreviveram.

Em seu relato ao jornalista Edmar Morel, no livro A Revolta da Chibata, João Cândido descreveu os momentos de terror que viveu na noite de Natal. “A impressão era de que estávamos sendo cozinhados dentro de um caldeirão. Alguns, corroídos pela sede, bebiam a própria urina. Fazíamos as nossas necessidades num barril que, de tão cheio de detritos, rolou e inundou um canto da prisão. A pretexto de desinfetar o cubículo, jogaram água com bastante cal... o líquido, no fundo da masmorra, se evaporou, ficando a cal. A princípio, ficamos quietos para não provocar poeira. Pensamos resistir os seis dias de solitária com pão e água. Mas o calor, ao cair das 10 horas, era sufocante. Gritamos. As nossas súplicas foram abafadas pelo rufar dos tambores. Tentamos arrebentar a grade... Nuvens de cal se desprendiam do chão e invadiam os nossos pulmões, sufocando-nos. A escuridão, tremenda. A única luz era um candeeiro a querosene. Os gemidos foram diminuindo, até que caiu o silêncio dentro daquele inferno”.

Os oficiais de plantão na noite do massacre disseram ter ouvido barulhos estranhos vindos da solitária, mas nada podiam fazer. A chave da cela estava em poder do comandante Marques da Rocha, que pernoitava no Clube Naval, no Centro do Rio de Janeiro, no momento do desespero dos marinheiros. Quando a solitária foi aberta, no dia 27 de dezembro, segundo João Cândido, os corpos beiravam a podridão. Os cadáveres foram retirados, a cela foi lavada, desinfetada e os sobreviventes, João Cândido e o soldado naval João Avelino Lira, jogados novamente na prisão. A causa da morte dos dezesseis, segundo o laudo oficial, foi por “insolação”.





Os gritos e gemidos dos dezesseis colegas mortos na cela da Ilha das Cobras nunca foram esquecidos por João Cândido. O marinheiro dizia ver os companheiros em agonia, sufocados pela cal, rolando no chão até a morte. As alucinações de João Cândido foram o motivo para a internação no Hospital Nacional dos Alienados, no Rio de Janeiro, em abril de 1911. O ofício enviado pela Marinha aos médicos do hospital relatava que o marinheiro sofria de “astenia cerebral, com melancolia e episódios delirantes”.

Os primeiros dias no hospital, no bairro da Urca, foram de tristeza e abatimento. À medida que foi conhecendo a equipe médica, João Cândido se tornou mais comunicativo e alegre. Contou aos profissionais sobre a revolta e sobre o período em que esteve preso. Aos poucos foi se integrando novamente à vida, gostava de ler os jornais do dia e sempre tinha um livro por perto. Um dia, João Cândido pediu aos médicos folhas de papel para escrever suas memórias. O título seria: A Vida de João Cândido ou O Sonho da Liberdade. Ditou para um outro paciente, Castanhola. João Cândido lia bastante, mas escrevia com dificuldade por causa de um acidente na Marinha, que decepou a falangeta do seu dedo indicador. O texto foi publicado na Gazeta de Notícias.

Durante o período de internação, João Cândido dizia estar no paraíso. Tinha conquistado a simpatia dos enfermeiros, que o deixavam fazer passeios fora do hospital, ganhava presentes, inclusive cigarros e dinheiro para a compra do jornal diário.

Em julho de 1911, João Cândido recebeu a notícia de que voltaria à prisão na Ilha das Cobras. Era o retorno para o inferno. O diretor, Juliano Moreira, atestava que nada mais justificava a permanência de João Cândido no hospital de alienados. Ele não apresentava mais nenhuma perturbação mental. E o marinheiro retornou à Ilha das Cobras, desta vez foi colocado na mesma cela onde anos antes estivera preso Tiradentes, o herói da inconfidência.

Era o retorno de João Cândido ao isolamento, à tormenta das prisões da Marinha. As condições, no entanto, eram melhores do que as que ele encontrou no Natal de 1910. As memórias que escrevia, porém, não puderam ter continuidade, alguns escritos originais foram destruídos pelos oficiais. Foram mais meses de calvário até o marinheiro ser, enfim, julgado pelos crimes que lhe eram infringidos. João Cândido ficou 18 meses preso na Ilha das Cobras. Os companheiros sobreviventes também amargaram o isolamento. Os presos eram mantidos incomunicáveis. Numa demonstração de humanidade, a Irmandade Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, no Rio de Janeiro, contratou três dos melhores advogados criminalistas do país para defender os marinheiros encarcerados. Evaristo de Morais, Jerônimo de Carvalho e Caio Monteiro de Barros foram os advogados de defesa de João Cândido e de outros líderes da revolta, entre eles Francisco Dias Martins e Gregório do Nascimento. Segundo Edmar Morel, no livro A Revolta da Chibata, da lista de 70 marinheiros indiciados pelo código penal da Marinha, restavam apenas dez prisioneiros na Ilha das Cobras. Os outros 60 nomes eram dados como desaparecidos, mortos por insolação ou fuzilados no navio Satélite.

João Cândido assumiu toda a responsabilidade pela revolta da esquadra. O processo teve início em junho de 1912 e foi concluído cinco meses mais tarde. Com destreza, os advogados provaram a inocência do marinheiro e de seus companheiros. Em seu discurso, Evaristo de Morais evocou o caráter humano de João Cândido e sua revolta: “não quero suscitar paixões, mas reconheço a generosidade do proceder de João Cândido. O seu ato foi um ato humano, de justiça (...). Estivemos à sua mercê, e ele nos poupou”.

Para cada acusação, foi apresentada uma defesa, desmontando o circo armado por oficiais para incriminar os marinheiros anistiados e ligá-los à segunda revolta, a do Batalhão Naval. João Cândido, por exemplo, era acusado de ter mudado o Minas Gerais de lugar sem ordens. A mudança, realmente, aconteceu, mas foi para tirar o encouraçado da mira de projéteis vindos da Ilha das Cobras, e foi informada, por rádio, às autoridades. Dias Martins era acusado de agredir oficiais no navio. Testemunhas desmentiram a acusação. O tribunal inocentou os marinheiros. A sentença, tardia, era de que não existia nenhuma prova contra os marujos anistiados, eles tinham sido presos injustamente.



Homem livre, o marinheiro, que dizia que o mar era seu amigo, estava sem navio. Via o mar de longe. Com a saúde avariada, sem dinheiro, casa ou família, João Cândido, o marinheiro que ajudou a livrar o país da chibata, pensou em voltar para o Rio Grande do Sul. Escreveu para amigos de infância, mas as respostas às cartas nunca vieram. Começou, então, a procurar trabalho no Rio de Janeiro. Depois de trabalhar em navios particulares, no Brasil e no exterior, sentiu a pressão da Marinha. Bateu em portas de várias embarcações. A resposta era sempre negativa. Quando conseguia um trabalho, era só de ida. No desembarque, era dispensado. O líder da revolta da esquadra, e exímio navegador, não tinha lugar no timão.

Então, o trabalho no mercado de peixe se tornou a fonte de renda para o sustento da família, que crescia com o passar dos anos. João Cândido se casou três vezes. Foram suas companheiras, Marieta, Maria Dolores e Ana, com quem viveu até a morte. O marinheiro teve uma vida conjugal também marcada por perdas e tragédias. Em 1913, o marujo encontrou o amor e casou-se pela primeira vez. A esposa faleceu quatro anos depois. Viúvo, casou-se novamente e teve quatro filhos. A segunda mulher suicidou-se ateando fogo na roupa. Dez anos mais tarde, uma filha repetiria o ato da mãe. Ao todo, João Cândido teve 11 filhos.

Da morada no bairro das Laranjeiras, Rio de Janeiro, onde ficou quando saiu da prisão, João Cândido foi para São João do Meriti, na Baixada Fluminense. Morou, até o fim da vida, numa rua sem asfalto, água encanada e luz elétrica. Sabedor de seus direitos, o marinheiro lutou como pôde por melhorias no bairro. Seu nome era certo nas listas de pedidos de asfalto e saneamento encaminhados à prefeitura. Mantinha sua dignidade até nas pequenas coisas. Em entrevista para o Centro de Memória Oral da Baixada Fluminense, sua filha, Zeelândia, relembrou com orgulho uma discussão de João Cândido num supermercado local por causa de um coco estragado. Ele reclamou do produto, dizendo que queria o dinheiro de volta. Negaram. João Cândido, com o produto em punho, saiu e disse que iria ao tribunal de pequenas causas. Foi alcançado já no meio da rua pelo gerente que tinha mudado de idéia. João Cândido exercia a cidadania.

Cidadania de marujo que exerceu no adeus ao Minas Gerais, em 1953, quando o navio poderoso foi transformado em sucata. Quando soube da venda do encouraçado, João Cândido embarcou num caíque, uma pequena embarcação de pesca, e foi até o Minas Gerais. Na noite escura e silenciosa, beijou o casco do navio. Lágrimas saudosas escaparam dos olhos.

Expulso da Marinha, João Cândido nada recebeu do governo federal. Não teve seu cargo de volta, não teve direito à pensão, mesmo após ter servido ao país por dezessete anos. Em 1959, a Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul concedeu uma pensão de dois salários para o marinheiro gaúcho. A pensão foi o único dinheiro que João Cândido recebeu dos cofres públicos após a revolta de 1910.

O recurso era insuficiente para sustentar a família, tendo João Cândido, mesmo doente, que trabalhar até o fim da vida. Sem aposentadoria, teve que trabalhar duro para custear as despesas da sua sofrida terceira idade. Seguiu o caminho de tantos outros idosos brasileiros, principalmente os que vivem no meio rural. Na Praça XV se misturava aos anônimos vendedores de peixe do entreposto da pesca. O salário completava a renda mensal da família. Vestia-se de forma íntegra e digna. Bem aprumado, mantinha em sua vida a ordem aprendida na Marinha. Era severo com os filhos e netos. Vez ou outra era reconhecido e ia novamente para as páginas dos jornais. Foi salvo por uma dessas reportagens, publicada no jornal Diário da Noite, quando adoeceu gravemente e não tinha nem como ser levado para o hospital. A família chamou um repórter conhecido, simpático a João Cândido. Dois dias depois da matéria publicada, uma ambulância subiu a rua de terra esburacada e levou João Cândido para ser internado num hospital.

As tentativas de se escrever sobre o marinheiro, resgatar sua saga, foram muitas, a exemplo do barão Homem de Mello, a quem concedeu longo depoimento. Porém, o livro nunca saiu. Cansado de tantas promessas de que seria lembrado pelos seus feitos, João Cândido, por vezes, se mostrou arredio a falar sobre sua vida na Marinha. Pediu sossego, buscava o anonimato. Mas como esquecer João Cândido? O jornalista Edmar Morel mostrou sua importância para o país. Apoiado em entrevistas com João Cândido e outros marinheiros e líderes da revolta, matérias publicadas nos jornais da época, nos documentos da Marinha e no diário do navio Satélite, remontou a história quase esquecida. Deu voz ao marinheiro e a seus companheiros. Foi o único trabalho sobre sua vida que João Cândido viu publicado. O livro esteve por várias vezes nas listas dos mais vendidos, ao lado dos volumes de Jorge Amado.

O cineasta Silvio Tendler também chegou cheio de boas intenções. Filmou João Cândido no ano de sua morte, encontrou um velho sofrido, mas ao mesmo tempo íntegro. Recuperou material sobre a revolta e falou com quem já tinha escrito sobre o assunto. Seria o primeiro filme de Tendler, não fosse a ditadura. O material foi escondido e, posteriormente, destruído. Falar no nome de João Cândido era perigoso. Mas os marinheiros lembravam-no com carinho. Eles reconheciam seu valor, sabiam que, por causa do marujo arrojado e da bravura dos seus companheiros, a chibata tinha sido abolida da Marinha do Brasil. Por causa desse reconhecimento, em 1963, a Associação de Cabos e Marinheiros deu um auxílio financeiro a João Cândido. O que durou só alguns meses. A entidade foi fechada pela ditadura militar.

Enterro de João Cândido debaixo de tempestade, durante a ditadura militar. À frente, segurando o caixão, o filho caçula Adalberto Cândido e o jornalista Gumercindo Cabral (de paletó) e, atrás deste, parcialmente encoberto, Edmar Morel.

2 comentários:

  1. O Mestre Sala dos Mares

    (João Bosco / Aldir Blanc)

    (letra original sem censura)

    Há muito tempo nas águas da Guanabara

    O dragão do mar reapareceu

    Na figura de um bravo marinheiro

    A quem a história não esqueceu

    Conhecido como o almirante negro

    Tinha a dignidade de um mestre sala

    E ao navegar pelo mar com seu bloco de fragatas

    Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas

    Jovens polacas e por batalhões de mulatas

    Rubras cascatas jorravam das costas

    dos negros pelas pontas das chibatas

    Inundando o coração de toda tripulação

    Que a exemplo do marinheiro gritava então

    Glória aos piratas, às mulatas, às sereias

    Glória à farofa, à cachaça, às baleias

    Glória a todas as lutas inglórias

    Que através da nossa história

    Não esquecemos jamais

    Salve o almirante negro

    Que tem por monumento

    As pedras pisadas do cais

    Mas faz muito tempo

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  2. O Mestre Sala dos Mares

    (João Bosco / Aldir Blanc)

    (letra após censura durante ditadura militar)

    Há muito tempo nas águas da Guanabara

    O dragão do mar reapareceu

    Na figura de um bravo feiticeiro

    A quem a história não esqueceu

    Conhecido como o navegante negro

    Tinha a dignidade de um mestre sala

    E ao acenar pelo mar na alegria das regatas

    Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas

    Jovens polacas e por batalhões de mulatas

    Rubras cascatas jorravam das costas

    dos santos entre cantos e chibatas

    Inundando o coração do pessoal do porão

    Que a exemplo do feiticeiro gritava então

    Glória aos piratas, às mulatas, às sereias

    Glória à farofa, à cachaça, às baleias

    Glória a todas as lutas inglórias

    Que através da nossa história

    Não esquecemos jamais

    Salve o navegante negro

    Que tem por monumento

    As pedras pisadas do cais

    Mas faz muito tempo

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