TER, 26/01/2016 - 09:19
Enviado por Free Walker
Do Guia do Estudante
Por três séculos, os índios e seus cavalos aterrorizaram portugueses e espanhóis nas redondezas do Pantanal, sem nunca se render aos colonizadores
Reinaldo José Lopes
Com a cara escondida pela barba longa, o velho bandeirante roncava, com ar de quem tinha realizado uma façanha e tanto – o que não deixava de ser verdade. Afinal, quase cinco meses antes, ele e sua comitiva haviam saído da vila de Araritaguaba (atual Porto Feliz, em São Paulo) e atravessado 3,5 mil quilômetros entre rios e florestas. Ia o ano de 1720 e do norte vinham notícias da descoberta de ouro nas cercanias de Cuiabá. Depois de passar a vida caçando índios no sertão, parecia uma boa idéia ir até lá e encher os bolsos. Não foi. Mal dá para descrever o susto e o desgosto do velho quando um tropel de cascos, misturado aos gritos de guerra, quase o fez cair da rede.
Não precisou pensar duas vezes (nem daria tempo para isso): eram os guaicurus, temíveis índios guerreiros que teimavam em complicar a vida de quem se atrevesse a vaguear pela região. O bandeirante nem teve tempo de procurar seu arcabuz: uma lança atravessou seu pescoço, e a última coisa que viu foi sua filha, moça prometida a um novo-rico de Cuiabá, sendo arrastada pelos índios.
Os guaicurus venceram novamente. Do século 16 ao começo do século 19, nenhum espanhol, português, brasileiro ou paraguaio estava seguro nas terras desse povo, entre o Pantanal brasileiro e o Chaco paraguaio. Nesse tempo, jamais foram submetidos e, quando aceitaram a paz com os forasteiros, fizeram-no em seus próprios termos.
Os mitos que um povo conta sobre a própria origem costumam dar uma boa indicação de como ele se vê (e quer ser visto). E os guaicurus tinham sua própria história para justificar seu espírito guerreiro, relatada até hoje por seus descendentes, os kadiwéus de Mato Grosso do Sul. “Eles contam que o Criador – chamado de Gô-noêno-hôdi – tirou todos os povos de um buraco e deu a cada um funções diferentes. Alguns ganharam enxadas e se tornaram agricultores, outros viraram artesãos e assim por diante. Só que ele esqueceu os kadiwéus, que saíram por último do buraco. Por isso, permitiu que eles roubassem um pouco de cada povo”, diz o antropólogo Jaime Garcia Siqueira, do CTI (Centro de Trabalho Indigenista), em Brasília.
E assim foi. Os ancestrais dos kadiwéus eram nômades que viviam da caça, da coleta e da pilhagem. Segundo Jaime, cuja tese de mestrado na USP foi um estudo sobre a tribo, as pesquisas sobre a origem dos antigos guaicurus dizem que eles podem ter migrado da Patagônia, na Argentina. Outra hipótese especula que sua origem é andina. Seja como for, o certo é que a região que habitavam na época do descobrimento, no miolo da América do Sul, recebia influências da Amazônia, dos Pampas e das grandes civilizações dos Andes, como os incas. Embora muitos de seus vizinhos tenham virado lavradores sedentários, eles preferiram continuar a vida errante, divididos em tribos com língua e costumes bastante parecidos, mas sem unidade política.
Não que isso tenha lhes criado algum problema: quando os europeus chegaram não havia dúvida que quem mandava na área eram os guaicurus. Os primeiros relatos sobre eles dão conta de que foram os guaicurus que mataram o português Aleixo Garcia, em 1526. O aventureiro partiu do litoral de Santa Catarina com um exército de guaranis e saqueou postos avançados do Império Inca, mas, na volta, não foi páreo para os guaicurus. O mercenário alemão Ulrich Schmidel, membro da expedição espanhola que fundou Assunção, no Paraguai, cruzou com os guaicurus por volta de 1540 e relatou que eles tratavam as demais tribos da região mais ou menos como os nobres europeus tratavam os camponeses. Ou seja, pilhavam seus bens e as obrigavam a cultivar a terra para eles. De algumas delas, cobravam tributo, em troca de proteção.
Em 1542, os guaicurus combateram e escaparam de uma expedição organizada pelo lendário conquistador espanhol Alvar Núñez Cabeza de Vaca. Foi quando tiveram seu primeiro contato com os cavalos europeus. Segundo relatos do próprio Cabeza de Vaca, os índios pareceram aterrorizados frente aos bichos, mas mesmo assim não se intimidaram: ateando fogo às próprias tendas, confundiram os invasores (alguns espanhóis foram decapitados a golpes de machados feitos com mandíbulas de piranha) e conseguiram fugir sob a cortina de fumaça.
A partir daí, as tentativas de estabelecer bases ou missões religiosas em território guaicuru viraram uma lista de fracassos. Não se sabe em que momento os guaicurus passaram a usar cavalos como montaria e mesmo a origem dos animais é polêmica. O espanhol Félix de Azara, comandante das fronteiras do Paraguai no fim do século 18, afirma que eles roubaram seus primeiros eqüinos em 1672, mas é quase certo que tenham adquirido os bichos bem antes, de expedições e assentamentos europeus que foram para o brejo. Sob todos os aspectos, o fato mudou a vida dos guaicurus. Na metade do século 18, calcula-se que eles tivessem 8 mil cavalos.
Segundo relato do jesuíta José Sánchez Labrador, que tentou evangelizá-los nessa época, “eles conhecem as enfermidades dos cavalos melhor que as suas próprias. Em seus animais, não usam selas nem estribos. Montam em pêlo, e com um salto estão sobre eles”.
Ao virarem cavaleiros, os guaicurus adotaram como arma principal a lança, muitas vezes com ponta de ferro, e reforçaram ainda mais seu domínio sobre as tribos da região. Povos como os guanás, ancestrais dos atuais índios terenas, tornaram-se seus vassalos. Internamente, eles desenvolveram uma complexa estrutura social. Havia uma camada de “nobres” (também chamados de “capitães” pelos brancos): os caciques de cada aldeia e seus parentes mais próximos, cujo domínio era passado de geração a geração. Depois vinham os “soldados”, guerreiros que ocasionalmente podiam virar “capitães”, sem que essa posição, no entanto, passasse de pai para filho.
Havia, ainda, os “cativos” – pessoas capturadas durante ataques guaicurus a outros povos indígenas e aos colonos europeus e seus escravos. Os cativos eram mulheres e, principalmente, crianças. Isso porque os guaicurus praticavam com freqüência o infanticídio e o aborto e poucos casais chegavam a criar mais de um filho, e vários morriam sem deixar herdeiros. Essa prática é comum entre povos caçadores-coletores, que estão sempre em movimento e para os quais bebês podem representar dificuldades durante longas marchas. As crianças capturadas, já mais crescidas, eram criadas como guaicurus e repunham a população das aldeias. Apesar de os cativos realizarem alguns dos trabalhos mais pesados e considerados indignos, como plantar, muitos foram incorporados à sociedade guaicuru.
Ao longo dos séculos 17 e 18, a situação não melhorou para os europeus que tentavam atravessar a bacia do Paraguai. Os cavaleiros guaicurus se aliaram aos paiaguás, que, com suas canoas velozes e remos que viravam lanças, faziam dos rios seu domínio absoluto. A dobradinha passou a prevalecer tanto nas planícies quanto nos rios que as cortavam. A aliança quase exterminou a bandeira de Raposo Tavares, que tentou subir o Paraguai em 1648, e mantinha Assunção sob terror constante.
Quando aventureiros paulistas acharam ouro em Cuiabá, em 1719, houve uma corrida em direção às minas – bem, corrida é modo de dizer, já que a viagem, por demorar tanto quanto a ida às Índias, foi apelidada de “monção”, nome da estação chuvosa no Sudeste Asiático. Embarcados em canoas e mal equipados, muitos dos futuros mineiros viraram presa fácil da coalizão indígena. A filha capturada do bandeirante – lá no começo desta matéria, por exemplo – deve ter sido levada a Assunção, como outros brancos que eram capturados, e trocada por um polpudo resgate.
No fim do século 18, no entanto, o interesse europeu na região não era mais representado por um bando de barbudos aventureiros em busca de ouro. Os governos de Espanha e Portugal, brigando para definir as fronteiras de suas colônias, estavam decididos a fortalecer sua presença na região. Os portugueses, em especial, depois da fundação do Forte Coimbra, em 1775, perceberam que a paz com os guaicurus era um tremendo negócio. E mais: os guaicurus eram os melhores aliados que se poderia querer por aquelas bandas. Eles ofereceram aos índios mantimentos e utensílios, além de cavalos e roupas. Mas não foi sem tropeços que ocorreu a aproximação. Em 1778, os guaicurus se aproximaram do forte para comerciar e, como parte do negócio, ofereceram algumas de suas mulheres aos soldados. Enquanto os portugueses estavam entretidos com as índias, foram atacados de surpresa e 54 deles morreram. Mas o governo português estava decidido a ter o grupo do seu lado, e acabou conseguindo firmar a paz em 1791.
Os índios mantiveram sua liberdade e suas áreas de influência. Os portugueses (e depois os brasileiros) ganharam um aliado e tanto nos conflitos de fronteira contra a Espanha e na Guerra do Paraguai (veja quadro na página ao lado). E os guerreiros guaicurus conseguiram chegar invictos ao fim dessa história.
Defensores da fronteira
Guaicurus serviramno Exército brasileiro durantea Guerra do Paraguai
Era mesmo pedir demais que os guaicurus pendurassem as chuteiras depois do acordo de paz com os portugueses. Na verdade, com o respaldo de uma das potências que antes dificultavam sua vida, eles continuaram os ataques a índios e brancos do lado paraguaio, além de funcionar como uma espécie de patrulha de fronteira informal. Os relatos da época contam que os soldados do Forte Coimbra só conseguiram resistir a um ataque espanhol feito em 1801 graças à ajuda de um guaicuru chamado Nixinica. Conta-se que o índio estava na cidade paraguaia de Concepción, 500 quilômetros rio abaixo do forte, quando ficou sabendo dos planos contra Coimbra. Nixinica, então, teria remado sua canoa até a fortificação portuguesa e avisado seu comandante, Ricardo Franco de Almeida Serra. A informação foi crucial para preparar a defesa do forte, que escapou de ser tomado. O mesmo, contudo, não ocorreu no início da Guerra do Paraguai, em 1864. O Forte Coimbra caiu em 48 horas. Corumbá, na então província de Mato Grosso, também foi tomada rapidamente. Mas os kadiwéus conseguiram se desvencilhar do invasor e fizeram ataques constantes ao lado paraguaio da fronteira. Em 1865, por exemplo, teriam cruzado o rio Apa, entre os dois países, e saqueado a aldeia de San Salvador. Outros membros da etnia foram incorporados ao Exército brasileiro como soldados a cavalo, e sua bravura foi elogiada por cronistas da guerra, como o Visconde de Taunay. Até hoje, os descendentes dos que lutaram no conflito o recordam de forma quase mítica. “Mas o fato é que, apesar dessas narrativas heróicas, eles foram usados como bucha de canhão, assim como aconteceu com outras tribos brasileiras”, afirma Jaime Siqueira, do CTI. Os próprios relatos de Taunay sugerem isso, já que o autor afirma que os kadiwéus recebiam as missões mais perigosas. Os índios atribuem a posse de suas terras atuais no Mato Grosso do Sul ao fato de terem lutado ao lado dos brasileiros, numa espécie de pagamento por serviços prestados. Contudo, não há documentos da época do Império que provem a existência de um compromisso semelhante entre o governo de dom Pedro II e os kadiwéus.
Saiba mais
Livros
Os Caduveos, Guido Boggiani, Itatiaia, 1975 - O autor, um artista italiano que se estabeleceu no atual Mato Grosso do Sul e conviveu com as tribos da área no fim do século 19, retratou os desenhos, a cerâmica e até a música dos kadiwéus (ou caduveos)
Red Gold - The Conquest of the Brazilian Indians, John Hemming, MacMillan, 1995 - Excelente apanhado dos combates entre os guaicurus e paiaguás e os brancos que invadiam seu território em busca de ouro, baseando-se nos cronistas coloniais que escreveram sobre o assunto
Jornal GGN
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