24 de Abril de 2017
Wadih Damous
Difundido por redes sociais e conclamando o "povo" ao posicionamento contra o projeto de lei sobre os crimes de abuso de autoridade, ora em trâmite no Senado, o filmete de três procuradores da força-tarefa da Operação "Lava Jato" é patético e ao mesmo tempo assustador. Repete a nova técnica da nata do corporativismo do Ministério Público, de apelar à coletividade para apoio a suas teses – que, postas em prática, significam mais redução de garantias processuais e menos responsabilidade para quem atua na repressão. Num país campeão em práticas policiais e judiciais violentas e arbitrárias e na discriminação dos mais pobres, não é difícil adivinhar onde a corda irá romper.
Podemos perfeitamente comparar a tática do Ministério Público com a do governo Bush depois de 11 de setembro de 2001, de propagandear a necessidade de restrição a direitos para o "combate ao terrorismo". Aqui só muda a agenda: querem que abramos mão do que a Constituição consagra para tornar mais eficiente o "combate à corrupção". Lá e cá pede-se aos bois compreensão da necessidade do matadouro. Lá e cá manipulam-se fobias para dar mais poder a certas instituições, que não existem para nos proteger, mas para nos reprimir. A fobia de lá é o medo puro e simples de ataques terroristas. A de cá, a ojeriza moralista a tudo rotulado como corrupto, começando pela própria democracia.
Enquanto isso, a sociedade continua cega diante da desastrosa e escandalosa atuação do Ministério Público na chamada "Operação Lava Jato". Hoje fala-se em 600 mil empregos perdidos só nas empresas diretamente alvejadas nas investigações. Não se contam os empregos riscados do mapa nas fornecedoras e nas empresas contratantes dos serviços das alvejadas. Certamente teremos mais de um milhão de lugares de trabalho erradicados. Um milhão de famílias, que não podem pagar suas contas no final do mês, condenadas à miséria.
O Ministério Público se defende com o argumento barato de que o colapso não foi causado pelas investigações e, sim, pelas práticas de corrupção investigadas. Ora, as práticas de corrupção, como querem chamá-las, não tiraram emprego algum. Existem desde tempos imemoriais e não impediram o crescimento da economia. Também não é lícito dizer que quem ataca a "Lava Jato" defende a corrupção. Isso não passa de mais uma pérola jogada nas redes sociais. Uma coisa é a naturalidade da investigação de corrupção, outra a dinâmica corporativa adotada nessa atividade, jogando para a plateia como se a legitimação do Ministério Público dela carecesse. A atividade persecutória deve ser levada a cabo com discrição. Além de ser mais eficiente, isso não coloca em risco a reputação de cidadãs e cidadãos que gozam da presunção de inocência. Prisões processuais e conduções coercitivas com estardalhaço não acrescentam nada ao inquérito, assim como o vazamento ou a publicidade ostensiva de delações não as torna mais robustas. Pelo contrário: alimentam a desconfiança sobre a seriedade da operação e a suspeita sobre o desvio de finalidade. Salta aos olhos, porém, que a investigação silenciosa não traria nenhum fruto político para o esforço corporativo de consolidação da hegemonia.
Recorre-se com certa impropriedade ao termo "fascismo" para designar qualquer forma de autoritarismo. Mas o fascismo é muito mais. Não é uma ideologia, mas uma prática política, precisamente de manipulação de fobias latentes contra inimigos imaginários, num ambiente de transmissão de um sentimento comunitário: é o 'nós', os cheios de razão, contra 'eles', que querem acabar com nosso estilo de vida. Até aí, o fascismo é uma forma de populismo, mas ele faz mais ainda: ao manipular, favorece um grupo, um líder, uma casta, com a subserviência dos demais. Tal grupo, líder ou casta são apresentados como quem pode salvar da iminente derrocada o "povo", a "sociedade". Seus planos costumam ser primários e têm por pressuposto a imprestabilidade de qualquer alternativa. Só os fascistas salvam.
Assim conceituado o fascismo, o Ministério Público age inegavelmente como força fascista. Quer nossa aquiescência para diminuir direitos. Apresenta-se como única instituição capaz de devolver a dignidade aos brasileiros, vilmente subtraída pelos políticos e empresários corruptos. Quer-se hegemônico, sem dever satisfação a ninguém. Sugere que da brutal repressão de políticos e empresários nasça uma nova economia mais limpa. E apela para o espírito público do povo, sua unidade no apoio dessa cruzada contra a corrupção.
O populismo fascista do Ministério Público escora-se no Direito Penal, apregoado como legítimo instrumento de lustração social. É o que podemos chamar de populismo penal, um abuso e exagero desse instrumento excepcional, que muito mais mal do que bem traz à sociedade. O Direito Penal pós-iluminista não é retributivista. Não é um meio de expiação do mal. Limita-se a evitar que um fato danoso a certo bem jurídico se repita, seja estatuindo um exemplo negativo para a sociedade, seja cuidando do transgressor, para que este reinicie sua caminhada sem reincidir na transgressão. O penalista não pode ser um moralista, pois não lhe cabe julgar quem quer que seja, mas apenas enquadrar condutas de modo a individualizar a terapia. Se o operador penal cair na tentação do moralismo, torna-se um retributivista simplório, justificando a violência contra o transgressor, como o aloprado que chuta a mesa em que dolorosamente esbarrou. A mesa continuará no seu lugar - imóvel, impávida, esperando o próximo incauto. Da mesma forma o transgressor: a violência não garantirá nem a recomposição do dano nem evitará a reincidência. Aliás, sentindo-se injustiçado, o transgressor mais se afastará do padrão de conduta desejado.
O "combate à corrupção" do Ministério Público vende a doce ilusão de extinguir o fenômeno. Ao maltratar os que aponta como corruptos, estaria justiçando o mal por eles praticado, proporcionando à sociedade uma sensação de alívio. Uma desopilação do fígado. Nada mais. Por isso espanta que haja gente disposta a entregar direitos por esse "well feeling", como o adicto entrega seus bens por um estupefaciente. Ocorre que as autoridades persecutórias se alavancam politicamente na promessa de alívio, fazendo com que a maioria não lhes cobre seu patrimonialismo corporativo, que transforma o poder estatal em algo apropriável em benefício de uma elite no serviço público, que goza 60 dias de férias por ano, acumula vantagens sem fim e consegue se manter no topo da cadeia alimentar do funcionalismo. Tal patrimonialismo dos autonomeados templários da cruzada do Bem contra o Mal não difere substancialmente do que os cruzados dizem combater nas práticas de corrupção. Pelo andar da carruagem, o nome do órgão deveria ser alterado para Ministério Privado.
E onde fica a corrupção depois de curtida a inevitável ressaca da embriaguez cívica, que os fascistas do Ministério Público proporcionam a seus apoiadores idiotizados?
Ora, a corrupção simplesmente não acaba. É inerente a um modo de produção centrado no lucro, na mais-valia. Ganância e ambição andam de mãos dadas. Quem quer dinheiro, quer poder e vice-versa. O que se pode fazer, sem uma revolução, que não assoma no horizonte atual da nossa história, é manter a corrupção em níveis não-disfuncionais para a governação. Só isso e nada mais. Para controlar com eficiência o fenômeno, urge diminuir as desigualdades em nossa sociedade ainda não liberta da escravocracia. Só com transparência na gestão pública, só com plena responsabilização de todos os seus agentes, inclusive os do Ministério Público com ajuda do projeto de lei sobre abuso de autoridade, transitaremos para uma república que legitimamente repudiará todas as formas de patrimonialismo, seja corporativo, seja de agentes políticos, seja de maus gestores, seja de empresários. Nela, o Direito Penal se esforçará - na surdina! - para que nenhum deles recaia na tentação do desvio de conduta.
Brasil 247
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