Editora da Agência Pública, Nathália Viana explicou como funciona a relação promíscua entre investigadores e grandes escritórios que depois lucram com os alvos dessas investigações
16 de dezembro de 2020
(Foto: Reuters | Reprodução)
Por Nathália Viana, em seu twitter – Muita gente ficou surpresa quando Sérgio Moro anunciou que ia trabalhar para uma consultoria que ajuda empresas a se livrarem de denúncias de corrupção. Eu não. Foi a decisão mais previsível para quem acompanha a parceria da Lava-Jato com os procuradores dos EUA. Segue o fio!
1) A consultoria americana Alvarez e Marsal anunciou que Moro será o chefe de investigações, disputas e compliance no seu escritório envidraçado na Vila Olímpia, à beira da Marginal Tietê, pertinho do luxuoso Shopping JK.
2) Especializada em reestruturação corporativa, a Alvarez & Marsal é a administradora judicial da Odebrecht, após a construtora ter pedido recuperação judicial por causa das investigações da Lava-Jato no Brasil, nos EUA e em dezenas de países da América Latina.
3) A consultora já faturou 17,6 milhões com o serviço, segundo reportagem do Uol. O Valor Econômico noticiou que o contrato de Moro o exime de advogar em causas em que haja conflito de interesses.
4) Entre os sócios sêniores, a empresa orgulha-se de contar com um ex-agente do FBI, um ex-procurador do Departamento de Justiça dos EUA (DOJ) e outro do governo britânico, além de um ex-funcionário da NSA.
5) Há alguns anos, críticos vêm apontando para a escandalosa “porta giratória” entre os procuradores americanos que se dedicam a investigar corrupção e os riquíssimos escritórios de advocacia que vendem serviços para empresas se “blindarem” exatamente desse tipo de investigação.
6) São jovens com ar de auto-satisfação e luxuosos escritórios com vista para os pontos mais cobiçados de Nova York ou Washington.
7) O caso mais notório é Patrick Stokes, que liderou entre entre 2014 e 2016 o departamento de FCPA (corrupção transnacional) do DOJ e depois virou sócio no escritório Gibson, Dunn & Crutcher’s, em uma posição cujo salário chegou a R$ 3,2 milhões em 2017.
8) Detalhe: a empresa foi a contratada pela Petrobras para negociar o acordo com o DOJ, assinado no final de 2018, dois anos depois de Patrick sair do cargo. O contrato traz a assinatura do advogado Joseph Warin, hoje sócio de Patrick.
9) Em um breve levantamento feito com a jornalista Raphaela Ribeiro identificamos que dentre 19 procuradores americanos envolvidos nas investigações da Lava Jato, do DOJ e do Securities and Exchange Commission (Sec), pelo menos seis foram para a iniciativa privada.
10) Kevin Gingras, que veio ao Brasil em nome do DOJ entrevistar Nestor Cerveró e Alberto Youssef em julho de 2016, hoje é vice-presidente de litígios na empresa fabricante de armas e tecnologia de defesa Lockheed Martin Corporation.
11) Charles Duross não chegou a trabalhar nos casos da Lava-Jato, mas liderou a unidade de corrupção internacional do DOJ até 2014. Estava nessa posição quando o governo americano começou a investigar a Embraer por corrupção na República Dominicana.
12) Duross hoje é advogado associado no escritório Morrison & Foerster LLP. Ele foi indicado pelo DOJ para acompanhar as práticas anticorrupção que vêm sendo adotadas pela Odebrecht e o desenvolvimento do setor de “compliance”, depois de pagar uma multa bilionária aos americanos.
13) Do lado do FBI, George “Ren” McEachern liderou até 2017 a Unidade de Corrupção Internacional, supervisionando as investigações de corrupção ligadas à Lava Jato. Pouco depois, passou para a consultoria Exiger, onde ensina métodos de “compliance”.
14) Aqui no Brasil, o pioneiro ao “mudar de lado” foi o procurador Marcelo Miller, que aparece como um dos principais articuladores com os americanos nas conversas da Vaza-Jato, propondo acordos diretamente a eles durante reuniões do grupo anticorrupção da OCDE.
15) Em abril de 2017 ele deixou o MPF e em seguida virou sócio do escritório de advogados especializado em compliance Trench Rossi Watanabe. Miller se deu mal.
16) O anúncio do afastamento foi feito às vésperas da delação de Joesley Batista, da JBS, que teve intermediação do mesmo escritório. Por ter atuado nas duas pontas do negócio, passou a ser investigado e foi denunciado pelo próprio MPF.
17) Em setembro daquele ano a PGR rescindiu o acordo de colaboração de Joesley Batista mediado pelo procurador. E Miller saiu da empresa poucos meses depois de ser contratado, recebendo a bagatela de R$ 1,6 milhão, segundo reportagem do O Globo.
18) Outro que pulou para a iniciativa privada foi o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima. Hoje no seu linkedin ele se descreve como “advogado na área de compliance, investigações internas, monitoria, e acordos de leniência e colaboração premiada”.
19) Virou consultor, segundo coluna de Fausto Macedo, sem dar o nome aos clientes que o têm contratado, autor de livro sobre compliance para bancos e palestrante.
20) Sem magistratura, a nova empreitada de Moro pode ser lida apenas como uma demonstração do apreço ao dinheiro – lembremos que ele chegou a receber mais de R$ 100 mil como juiz – e de falta de imaginação, engordando ainda mais fila da “porta giratória” da Lava-Jato.
Brasil 247
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