28 de maio de 2021
Jair Bolsonaro. Foto: Reprodução
“Uma mão fria aperta-me a garganta e não me deixa respirar a vida. Tudo morre em mim, mesmo o saber que posso sonhar. De nenhum modo físico estou bem. Todas as maciezas em que me reclino têm arestas para a minha alma. Todos os olhares para onde olho estão tão escuros de lhes bater esta luz empobrecida do dia para se morrer sem dor”. Fernando Pessoa, Livro do Desassossego.
É muito interessante observar a reação das pessoas quando se tem que lidar com a lógica dos fascistas negacionistas. Esses assassinos em potencial, cúmplices do extermínio, têm o desplante de criticar o uso de máscara, chegando ao cúmulo de dizer que elas aumentam o número de infectados. Sem nem ruborizar, gostam de pregar a necessidade da aglomeração, ridicularizando o isolamento.
São críticos fundamentalistas das vacinas e ainda receitam, e dizem tomar, cloroquina e tudo o mais que os amantes da imunização por rebanho apregoam. São os que aplaudem e entram em delírio com as sandices ditas pelo presidente da República ao desaprovar as orientações dos organismos internacionais da área da saúde. Um show de horrores deprimente.
Esse é o perfil dos apoiadores do governo Bolsonaro, um presidente que está sendo responsabilizado por especialistas das áreas médicas e da advocacia pela morte de milhares e milhares de brasileiros pela omissão. A responsabilidade criminal é evidente.
A sociedade espera, ansiosa, pela manifestação do sr. procurador-geral da República, que é quem constitucionalmente tem o direito e o dever de decidir sobre a apresentação da denúncia perante o Supremo Tribunal Federal. Várias entidades representativas fizeram sua parte e apresentaram o pedido de abertura do processo criminal, mas a palavra final é da PGR (Procuradoria-Geral da República).
Dentre os advogados, amadurece a ideia, já proposta por mim meses atrás, de procurar a responsabilização criminal do presidente ajuizando queixa-crime subsidiária, ante a inércia do procurador-geral. Depois de dizer isso numa live, recebi muitas manifestações de parentes de pessoas que morreram pelo abandono na crise sanitária com a intenção de serem os autores para a provável ação penal.
Da mesma maneira, há uma tremenda expectativa sobre o relatório da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Covid, realizada pelo Senado, que deverá apontar vários crimes de responsabilidade do presidente e seu bando. Nesse caso, o relatório tem que ser encaminhado à Câmara dos Deputados para a abertura da discussão sobre o afastamento do presidente.
A decisão de encaminhar ou não a proposta de impeachment para a votação pelo plenário da Câmara cabe, regimentalmente, ao presidente da Casa. Também nesta situação, como no caso da denúncia ao Supremo Tribunal, é necessário discutir os poderes imperiais do presidente da Câmara e do procurador-geral. É bom lembrar que a CPI da Covid só foi instalada após uma decisão do ministro Barroso, do STF, provocado pela inércia do presidente do Senado.
Todas essas relevantes e cruciais questões deságuam num debate oportuno e responsável: deve o cidadão sair às ruas para exigir um pingo de dignidade por parte do presidente da República, propondo a imediata retirada desse grupo de extrema direita do poder?
Será um grito, um apelo e um pedido desesperado pela vida contra a barbárie e as mortes desenfreadas. Mas, entre nós, com consciência das dores, nossas e dos outros, a discussão sobre participar ou não das passeatas de protesto é densa e sem resposta pronta. Vale nos amparar na genial Clarice Lispector:
“Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento”
A coerência da pregação pela necessidade do isolamento nos mantém em casa. Não somos bolsonaristas irresponsáveis, mas ficar em casa na companhia de 450 mil mortos é inquietante, frustrante e nos enche de profunda indignação. É como se nossa falta de ação representasse qualquer hipótese de concordância com a barbárie. Chega uma hora que a indignação já não cabe nos limites das nossas casas.
É na saudade e na certeza de que eles, os 450 mil que se foram, rondam nossas vidas que a hipótese de estar nas ruas em 29 de maio, próximo sábado, toma corpo.
A sensatez nos faz discutir caso a caso. Se a opção for ir às ruas, é imperioso tomar todos os cuidados. As caminhadas pelo Brasil afora já se iniciam com a presença, em todas elas, dos quase meio milhão de brasileiros que foram tragados pela postura desumana, covarde e cruel desse governo que é o representante e cultor da morte. Mesmo numa cidade pequena do interior, que consiga reunir apenas 100 pessoas no protesto, é bom que cada um saiba que existe uma presença invisível, que nos acolhe e nos abraça, daqueles brasileiros que foram vencidos pelo vírus e pela omissão criminosa do governo e que acompanham os protestos silenciosamente.
Como estou vacinado, estarei nas ruas, com máscara e respeitando o distanciamento, em solidariedade aos que não estão mais aqui e em protesto contra a barbárie. Entendo que o isolamento é necessário para enfrentar a cepa indiana, mas a democracia e as ruas são necessárias para vencer a cepa miliciana. Mas entendo e respeito os que optarem pela coerência da não presença. Cada um continuará a encontrar uma maneira de mostrar seu apoio e, ao mesmo tempo, seu descontentamento. Sabemos que é um ato pela vida e que os bolsonaristas sequer entenderão.
Como ficou evidente na CPI, esses irresponsáveis se alimentam da mentira e criaram um mundo imaginário no qual vivem. Fazem um papel ridículo, mas não se constrangem. Até para sentirem vergonha teriam que ter algum vestígio de humanidade, de integridade. Só se sente ridículo quem tem alguma noção do que é ser ridículo. Deveriam ler Manuel Bandeira, no Poema do Beco:
“O que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
O que eu vejo é o simples beco.”
Não estaremos nas ruas por eles, os cúmplices do extermínio, mas pelo sonho de ter de volta uma vida digna. Sabemos todos que a pandemia é gravíssima e que milhares de mortes aconteceriam de qualquer maneira pelo vírus traiçoeiro. Só não queremos ter qualquer responsabilidade pela omissão, pelo escárnio com a ciência e pela falta de solidariedade ao não ver a dor do outro pelos olhos de quem sofre.
E como tenho dito, ainda irei na manifestação de verde e amarelo para mostrar para esses infames que eles querem nos roubar tudo: a esperança, o humor e até a nossa identidade, mas que continuaremos a resistir. Somos muito maiores do que este rasgo de obscurantismo que se abateu sobre o Brasil.
Por isso mesmo, cabe a cada um de nós responder com o solene desprezo que eles merecem. Vamos vencer essa praga que cultua o vírus. Já nos levaram muito, saquearam o país destruindo as instituições, seja na saúde, na educação ou na cultura. Mas marcharemos de mãos dadas, simbolicamente, com os que partiram e daremos aquele abraço afetuoso como se a saudade pudesse materializar o afeto.
Com o pensamento no poema Ausência, da grande poeta Sophia de Mello Breyner:
“Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda que a tua.”
Diário do Centro do Mundo - DCM