sábado, 3 de dezembro de 2016

Fora eleição, o resto é golpe



3 de Dezembro de 2016




Nós sabemos que a dificuldade de pensar com a própria cabeça constitui um dos obstáculos mais sérios à uma atuação política coerente com as urgências da história de um país. Numa sociedade dividida em classes, onde a dinâmica elementar da vida política é alimentada por interesses divergentes e até incompatíveis, a falta de clareza a respeito dos objetivos prioritários é o caminho mais curto para a derrota e o retrocesso.

Situações políticas turbulentas, nas quais a relação de forças evolui rapidamente e a posição dos personagens principais se modifica de forma difícil de prever, são particularmente propícias ao engano e a confusão.

É assim que, na conjuntura atual, que pode evoluir para a consolidação de um estado de exceção, a prioridade número 1 da disputa política deve ser a defesa da democracia e das garantias fundamentais, que acima de tudo protegem os interesses e liberdades dos trabalhadores e das camadas mais pobres.

Por essa razão, o protesto convocado para domingo, deve ser repudiado com veemência.

É um nova expressão da hipocrisia moralista -- bem denunciada por Jessé de Souza em A Tolice da Inteligência Brasileira -- que ajudou a despolitizar nossa vida pública e criou um ambiente de criminalização forçada que levou o país a beira do precipício. Sob inspiração direta da mídia grande, um país com graves problemas sociais para desenvolver, e todo um futuro para construir, adotou uma agenda política onde a corrupção tornou-se a maior prioridade. Ajudava a combater adversários indesejáveis e enfraquecia, naturalmente, o debate sobre as questões que fazem parte do cotidiano sofrido da maioria, como desemprego, a educação em petição de miséria, a saúde pedindo socorro.

A finalidade do ato de domingo é elevar a pressão autoritária sobre o Congresso, instituição que, mesmo enfrentando os problemas que conhecemos -- e outros que sequer imaginamos -- costuma ser chamada a agir em momentos de grande crise. Isso ocorre porque expressa a soberania do voto popular, lastro que o Judiciário não possui e, num Executivo empossado através de uma "encenação", como definiu o ex-presidente do STF Joaquim Barbosa, transformou-se num desfalque altamente comprometedor.

Em dezembro de 2016, já ficou demonstrado, no prazo recorde de um semestre, aquilo que nunca foi difícil imaginar: que Michel Temer é um presidente comprovadamente incapaz de demonstrar reações adequadas ao cargo -- seja para mostrar solidariedade às famílias das vítimas da tragédia dos craques do Chapecoense, seja para apontar rumos para tirar o país do desastroso atoleiro em que se encontra. Não custa recordar, assim, a amizade de conveniência que une Michel Temer com a turma dos protestos de amanhã. Ainda na posição de vice presidente, ele deixou o Jaburu para ser sabatinado em São Paulo por uma dessas siglas do protesto de amanhã, que já atuava abertamente pela sabotagem da democracia. Voltou com nota 10, é claro.

A outra necessidade é fornecer massa de manobra para ajudar Sérgio Moro a derrotar as tentativas de enfrentar abusos de autoridade cometidos por policiais, membros do ministério público e juízes no país inteiro, num debate que vai muito além da Lava Jato. Está em jogo, aqui, o debate sobre democracia e ditadura, liberdade e estado de Direito. 

Vamos ter o cuidado de pensar que um país nunca é construído no prazo de 24 horas. Em sua vida cotidiana, a imensa maioria dos brasileiros sobrevive num inferno jurídico onde os "autos de resistência" são instrumento cotidiano para se legalizar execuções pela PM de jovens pretos e pobres da periferia. Da mesma forma, a esterilização do habeas corpus, prática corrente sob a ditadura militar, permanece como um recurso frequentemente utilizado para quebrar a resistência de uma pessoa mantida sem justificativa legal atrás das grades. Do ponto de vista de quem acredita que a liberdade é um valor fundamental da existência humana, em qualquer latitude, estamos falando de práticas que, sem eufemismos fora de hora, é correto classificar como tortura. E aí podemos incluir, como parte do mesmo sistema, os abusos cometidos na Lava Jato. 

Ao dizer, no Senado, que o debate sobre abuso de autoridade era uma forma de pressionar a Operação, Sérgio Moro deu um tiro no pé. Confirmou aquilo que os críticos da Lava Jato sempre denunciaram. 

"Quem não deve não teme," já havia lembrado, em artigo publicado no 247, o procurador Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça, citando um desses mandamentos da sabedoria popular que conservam inteira validade em horas dramáticas -- e que juízes e procuradores adoram repetir quando lhes é conveniente. "Numa república, ninguém pode se eximir de controles," acrescentou Aragão.

Referindo-se a origem do debate, que nasceu a partir de um projeto de 10 pontos de combate a corrupção, Aragão foi categórico: "o projeto é de iniciativa popular só na forma, com coleta populista das assinaturas. Mas foi gestado sem debate, em gabinetes do MPF, por um grupelho de obstinados com o tema do combate à corrupção.".

"Sou a favor da Lava Jato, mas eles (os procuradores) querem privilégios," explicou o deputado e ex-governador Jarbas Vasconcelos, adversário irredutível de Lula e do Partido dos Trabalhadores, que votou contra o projeto do Ministério Público.

Ao assumir uma postura de oposição a Sérgio Moro, o ministro do STF Gilmar Mendes deu a dimensão que o problema dos abusos está assumindo. Essa postura deixou muitas pessoas confusas, perguntando-se de que lado era preferível ficar: com o velho aliado do PSDB no judiciário, ou com o juiz que pelo menos colocou empresários corruptos na cadeia.

A resposta encontra-se na necessidade de raciocinar com a própria cabeça e compreender riscos e possibilidades da conjuntura. Gilmar e Moro andaram juntos quando o impulso autoritário que vinha da grande mídia e alimentava as ruas era útil para ambos. Acabaram separados quando o mesmo movimento, que muitos julgam em fase menos distante do assalto ao poder, pode prejudicar os aliados históricos de Gilmar, mas beneficiar os aliados originais de Moro. 

Essa é a questão -- e não chega a ser nova. Vários líderes civis do golpe de 1964, foram cassados e se tornaram adversários empedernidos do regime militar, a começar pelo mais estridente entre eles, Carlos Lacerda. Ulysses Guimarães deu um voto favorável ao golpe e mais tarde tornou-se o Senhor Diretas. Herdeiro de uma linhagem de latifundiários que perseguiram lideranças rurais com métodos sanguinários, o senador Teotônio Villela tornou-se o grande profeta dos direitos humanos e da anistia aos presos políticos. Velho parlamentar golpista contra Getúlio em 1954, conspirador contra Jango em 1964, Aliomar Baleeiro tornou-se ministro do Supremo por decisão da ditadura mas na década de 1970 deu um voto a favor de padres franciscanos que pertenciam ao circulo da guerrilha de Marighella.

Nessa conjuntura, não há saída além do esforço para compreender aonde se encontram os interesses da maioria e reagir a partir daí. Estamos falando da preservação da democracia, que precisa ser devolvida ao povo, através de eleições diretas para presidente. O resto é golpe, seja novo, seja velho.


Brasil 247

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