quarta-feira, 19 de agosto de 2015

“Tivemos uma brutal ampliação do acesso à saúde com o Mais Médicos”

por Rodrigo Martins — publicado 03/08/2015 04h41


À CartaCapital, o ministro da Saúde faz um balanço do programa e explica porque o governo pretende expandir as escolas de medicina

Marcelo Camargo/ Agência Brasil

"O plano é chegar a 600 mil médicos em 2026", afirma o ministro Arthur Chioro



Com dois anos de existência e 18,2 mil profissionais inscritos, o programa Mais Médicos alcança 4.058 cidades e 34 distritos indígenas, com impacto sobre 63 milhões de brasileiros, informa o Ministério da Saúde. Não há mais cidades sem ao menos um médico para atender a população. Há dois anos, havia 700. Mas o provimento emergencial está longe de ser uma solução definitiva. Para reduzir a dependência dos estrangeiros, que hoje representam 70% da força de trabalho no programa, o governo decidiu criar 11.447 novas vagas em cursos de medicina até 2017, das quais 5,3 mil já foram autorizadas, a maior parte delas em instituições privadas.

A proposta é controversa. As entidades da área de saúde acusam o governo de promover uma expansão indiscriminada das faculdades, em locais com infraestrutura inadequada, colocando em risco a qualidade da formação médica. Em reação, o Conselho Federal de Medicina e a Associação Brasileira de Escolas Médicas decidiram criar um modelo próprio de avaliação dos cursos da área, independente daquele que já é adotado pelo governo. E o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) promete ingressar na Justiça contra a abertura dos novos cursos.

Na entrevista a seguir, o ministro Arthur Chioro faz um balanço do programa e rebate parte das críticas formuladas pelas entidades médicas. Ele ressalta que o Brasil tem 1,8 médico por mil habitantes, índice bem inferior ao de nações desenvolvidas, a exemplo do Reino Unido (2,7) e da França (3,5), e até mesmo de vizinhos sul-americanos, como Uruguai (3,7) e Argentina (3,2), segundo a Organização Mundial da Saúde. Com a ampliação das vagas em cursos de medicina, seria possível alcançar, em 2026, o atual patamar do Reino Unido, que possui o segundo maior sistema de saúde público de caráter universal, atrás apenas do Brasil. “No primeiro edital, 254 cidades se inscreveram e 153 apresentaram proposta. Mas apenas 39 foram selecionadas, exatamente por cumprir os requisitos de qualidade.”

CartaCapital: O programa Mais Médicos acaba de completar dois anos. Já é possível mensurar seu impacto na saúde pública?

Arthur Chioro: Claro. Em primeiro lugar, tivemos uma brutal ampliação do acesso à saúde, em particular da população que mais precisa do SUS, a parcela mais pobre, mais afetada pela desigualdade social. Pela primeira vez em 515 anos de história oficial do Brasil, temos todos os distritos sanitários indígenas com equipes de saúde completas. Não é pouca coisa, estamos falando de mais de 700 mil brasileiros que vivem em aldeias. Chegamos às comunidades quilombolas, aos assentamentos rurais. E também às periferias das grandes cidades. O programa cobre atualmente 4.058 municípios, com impacto sobre 63 milhões de cidadãos. Hoje, não há mais nenhuma cidade sem ao menos um médico para atender a população local. Antes, havia 700. A ampliação de oferta é gigantesca. 

CC: Essa ampliação já teve algum impacto nos indicadores de saúde?

AC: Como a atenção básica resolve cerca de 80% dos problemas que levam alguém a procurar um serviço de saúde, já observamos uma diminuição na procura por serviços de urgência e emergência e por hospitais de alta complexidade. Em muitos casos, as pessoas recorriam a esse tipo de serviço, voltado para casos mais graves, porque eram os únicos locais abertos. Por outro lado, em muitas regiões do País, cresceu a demanda por serviços especializados. Os pacientes precisavam de um especialista, mas nem sequer tinham passado pelo atendimento básico para ter o encaminhamento necessário. Hoje, temos 18,2 mil profissionais inscritos no Mais Médicos, o que fez o número de consultas aumentar em 33%. Desde a criação do SUS, há 27 anos, falamos da necessidade de priorizar a atenção básica. Só agora colocamos isso em prática.

CC: Por que é importante dar prioridade à atenção básica?

AC: É mais racional e efetivo. Se começarmos o tratamento do diabetes no estágio inicial, por exemplo, podemos evitar complicações e preservar o bom funcionamento dos rins. O Brasil era o país com maior número de pacientes que recorriam precocemente a transplantes renais ou hemodiálise. O mesmo vale para a hipertensão. Sem o devido controle, o paciente já chega ao pronto-socorro com infarto ou AVC. Já percebemos uma diminuição das internações por causas sensíveis à atenção básica. Em poucos meses ou anos, teremos indicadores mais sólidos. 

CC: Quando o programa foi lançado, houve muitas críticas à contratação de médicos estrangeiros, devido às barreiras do idioma e à dispensa de revalidação do diploma. Que avaliação o senhor faz do trabalho deles?

AC: É um trabalho excepcional, e quem nos diz isso é a população. A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) fez uma pesquisa recentemente, com 14 mil usuários de mais de 600 municípios. Resultado: 85% deles dizem que o atendimento está melhor ou muito melhor. Mais de 90% disseram não ter nenhuma dificuldade ou ter uma dificuldade mínima para entender as orientações dos médicos. Não havia razão para temer, até porque os estrangeiros passaram por prova de proficiência em língua portuguesa. À época, eu era secretário de saúde de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, e conversei com muitos pacientes. Lembro da fala de uma senhora: “No começo a gente demorou um pouquinho para se entender, mas está tudo resolvido. Esse médico olha nos meus olhos, escuta o que eu digo. Cuida de mim como nunca fui cuidada”. Percebe? O brasileiro quer um médico que cuide dele, que o respeite, que lhe dê atenção. Se ele é brasileiro, cubano, espanhol, americano ou russo, como há casos no programa, isso não importa.


Para 85% dos usuários do Mais Médicos, o atendimento melhorou. Foto: Tânia Rêgo / Agência Brasil




CC: De acordo com as entidades médicas, a falta de estrutura é o que afugenta os brasileiros dos municípios do interior ou das periferias.

AC: Não é verdade, a atenção básica demanda uma estrutura mais simples. Não estamos falando de atendimento hospitalar ou de serviço ambulatorial especializado. Em uma unidade básica de saúde, o primordial é o cuidado clínico. O médico precisa de pouco, de uma caneta, de um prontuário, de um estetoscópio, de um aparelho para examinar o fundo de olho... Tanto que muitos profissionais executam o trabalho no domicílio dos pacientes. Isso seria inconcebível para um especialista. Não dá para um oftalmologista levar todo o seu maquinário na casa do paciente. De toda forma, estamos investindo mais de 5 bilhões de reais na construção, reforma e ampliação de 26 mil Unidades Básicas de Saúde. Desse total, 10 mil já foram entregues. As condições de trabalho são adequadas, tanto que as novas vagas do programa têm sido preenchidas 100% por brasileiros. Estamos vencendo as resistências. Aliás, a UFMG entrevistou os médicos brasileiros que integram o programa, e 91% deles recomendaram a colegas que viessem participar do Mais Médicos. 

CC: Questiona-se, inclusive, se realmente há escassez de médicos no Brasil. Ou mesmo a necessidade de se ampliar as vagas em cursos de medicina.

AC: O problema é que houve um processo de radicalização muito forte. Uma parte das entidades médicas, por interesse corporativo, e outros, por uma disputa político-ideológica, continuam dizendo que não precisa de mais médicos no Brasil. Veja o caso de São Paulo. O estado possui 17 regiões administrativas, e apenas cinco estão acima da média do Brasil, de 1,8 médico por mil habitantes. No Vale do Ribeira, há menos de 1 médico por mil habitantes, mesmo padrão de cinco estados do Norte do País, que estão em situação bastante crítica. Tem super concentração? Em alguns lugares, sim. Mas o problema não é falta de uma carreira...

CC: Não? As entidades médicas dizem exatamente o oposto. O profissional brasileiro se sente desestimulado para atuar num município muito afastado se não tiver assegurada a possibilidade de se especializar, avançar na carreira, depois mudar para uma cidade maior.

AC: Não sou contra a ideia, acho interessante. Mas por que as carreiras dos juízes, promotores e delegados funcionam? O número de candidatos é muito superior ao de vagas disponíveis. Nossa situação é distinta: temos 384 mil médicos no total, 1,8 para cada mil habitantes, índice bem inferior ao de nações desenvolvidas e de alguns vizinhos da América Latina. Além disso, a formação médica nunca privilegiou a atenção básica. Os profissionais são formados para serem especialistas. Não dá para tentar resolver essa distorção apenas com o provimento emergencial de médicos, com o reforço de profissionais estrangeiros. O plano é chegar a 600 mil médicos em 2026, até porque não dá para formar médicos da noite para o dia. São seis anos de formação mais a residência.

CC: Como está sendo planejada essa expansão das faculdades?

AC: Você sabe como funcionava antes? Era a instituição de ensino que tomava a iniciativa de abrir o curso e definia onde iria atuar. Se preenchesse todos os requisitos legais, recebia a autorização. Como funciona agora, a partir do Mais Médicos? Nós criamos critérios. Fizemos um levantamento em todas as 436 regiões de saúde para identificar os locais que mais precisavam. Demos prioridade a cidades com mais de 70 mil habitantes e que têm um número de médicos inferior ao que pretendemos chegar em 2026, isto é 2,7 profissionais por mil habitantes. Se esse município já tem uma faculdade, não autorizamos uma nova. 

CC: As entidades médicas dizem que os municípios selecionados não tem estrutura adequada para abrigar escolas de medicina.

AC: Também não é verdade. Verificamos todos esses locais, para saber se eles possuíam rede hospitalar suficiente, com ao menos cinco leitos do SUS para cada nova vaga de graduação, se havia uma equipe de saúde da família para cada três estudantes, se o município tinha um Centro de Atenção Psicossocial (Caps), para cuidar da saúde mental, se tinha serviços de urgência e emergência, SAMU... No primeiro edital, 254 cidades se inscreveram e 153 apresentaram proposta. Mas apenas 39 foram selecionadas, exatamente por cumprir os requisitos de qualidade.

CC: Por que abrir esses cursos em cidades menores, do interior? 

AC: É uma medida para combater as iniquidades no acesso à saúde. No primeiro edital, percebemos que não houve uma expansão adequada de vagas nas regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste. Por isso, lançamos outro, e já foram selecionadas mais 22 cidades para abrigar escolas de medicina. Não flexibilizamos nenhuma regra. As instituições de ensino precisam ter uma boa nota no Enade, condições econômico-financeiras adequadas, um projeto pedagógico coerente com as diretrizes nacionais curriculares… Elas nos apresentam um programa de qualificação do corpo docente, assumem o compromisso de abrir vagas de residência médica em parceria com os municípios e com os estados. Temos a garantia de que 100% dos alunos, quando terminarem a graduação, terão acesso a uma vaga de residência na própria região. Até porque um dos principais fatores de fixação dos médicos é o local onde fazem a residência. Se o profissional se forma no interior do Ceará, mas vai a São Paulo para fazer residência, acaba ficando na capital paulista.


Carta Capital



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