A primeira grande surpresa das eleições primárias argentinas deste domingo (9/8) é que as pesquisas acertaram quase em cheio o resultado final.
Daniel Scioli, governador da Província de Buenos Aires e candidato único da coligação kirchnerista FpV (Frente para a Vitória), alcançou 38,5% dos votos, ficando a 1,5% de um dos cenários que lhe permitiria vencer as presidenciais já no primeiro turno, no dia 25 de outubro.
Daniel Scioli e Mauricio Macri, os favoritos na disputa pela Casa Rosada. (foto: Rádio Mitre)
Para se vencer as presidenciais argentinas já no primeiro turno, um candidato precisa de 45% dos votos válidos, ou de 40% dos votos e uma vantagem de mais de 10% sobre o segundo colocado.
Numa visão bastante pragmática, podemos dizer que esse segundo cenário estaria bem próximo de se concretizar. Scioli conseguiu 38,5% neste domingo. Seu principal adversário, o conservador Mauricio Macri, obteve 24,2%, embora sua coalizão tenha obtido 30%.
Uma visão sobre o embate direito entre Scioli e Macri favorece o kirchnerista, que consegue 14% de vantagem e um apoio inicial que, se mantido sem turbulências até outubro, deveria significar uma votação de mais de 40% no primeiro turno.
Porém, esse mesmo percentual não garante a Scioli uma votação de mais de 45% no dia 25 de outubro – o fato de ter sido candidato único de sua chapa nas primárias o obriga a buscar votos, daqui por diante, entre candidaturas que ficaram pelo caminho, todas elas, em maior ou menor grau, críticas do atual governo –, necessária para evitar o segundo turno independente dos votos opositores.
Aqui nasce o desafio de Mauricio Macri. O atual prefeito da cidade de Buenos Aires é maior referente da direita argentina nos últimos dez anos, mas concorre pela primeira vez à presidência. Seus 24,2% de votos significam que precisará buscar votos. Essa busca começa dentro de seu próprio movimento político,Cambiemos (“Mudemos”), que obteve 30%, e é realmente um desafio, já que os outros dois partidos que compõem a lista são os partidos do assim chamado “radicalismo” argentino – a UCR, União Cívica Radical, e a CC, Coalizão Cívica, que longe de serem literalmente radicais, representam a tradicional centro-esquerda social democrata.
Sergio Massa, o ex-kirchnerista antes visto como aliado da alternância, hoje aparece como obstáculo para as pretensões da direita argentina. (foto: Telam)
Essa migração de votos não é tão automática. Os radicais são velhos inimigos do kirchnerismo – foram os principais derrotados nas duas vitórias de Cristina Fernández, em 2007 e 2011 –, mas a coligação com o PRO (Proposta Republicana, de Macri), frente que simboliza a direita mais dura e neoliberal da Argentina, parece incômoda para muitos militantes mais tradicionalistas.
Quem poderia receber os votos desses radicais que não engolem a aliança com a direita são Sergio Massa, ex-kirchnerista que se construiu, nos últimos três anos, a imagem de paladino contra o bipartidarismo – uma espécie de Marina Silva da Argentina, com o mesmo discurso de “não vote mais nos mesmos, chega da lógica Boca-River na política, existe uma terceira via, que não é continuar como estamos agora nem voltar aos Anos 90”, usando as palavras usadas por ele logo depois das primárias –, e principalmente Margarita Stolbizer, ex-militante do radicalismo – passou tanto pela UCR quanto pela CC –, hoje líder da recentemente formada Aliança Progressista.
Massa obteve 14,2% nas primárias. Sua coalizão, a Frente Renovadora, alcançou 20,6%. A absorção dos demais votos – de José Manuel de la Sota, do Partido Democrata Cristão – parece ser mais natural no caso dele. É pouco para ameaçar Scioli, mas suficiente para atrapalhar as aspirações de Macri, sobretudo pelo fato de que seu percentual permite a ele sonhar com disputar o segundo lugar, pelo menos.
Algo parecido acontece com Margarita Stolbizer, que teve 3,5% dos votos nas primárias. A atual deputada representa claramente esse radicalismo que não aceitou a aliança com a direita, e pode roubar alguns dos votos que foram para a lista Cambiemos, mas que não estariam dispostos em apoiar a Macri.
A ex-radical Stolbizer, uma das candidaturas de centro-esquerda que podem ser o fiel da balança na eleição do novo presidente. (foto: Minuto Santa Fé)
Claro que o campo das especulações inclui outras estratégias. Nesta segunda-feira (10/8), horas depois das primárias, os portais argentinos já relatavam um telefonema de Macri para Massa, levando a rumores de que tentou convencer o adversário a desistir da sua candidatura para apoiá-lo, e outro de Massa para Stolbizer, com rumores semelhantes.
O próprio Macri parece ter entendido que os votos que estão em disputa, mesmo em sua coalizão, não são os do eleitorado tradicional de direita – que já está convencida a votar naquele que tenham mais chances de derrotar o kirchnerismo, seja quem seja.
Antes mesmo das primárias, o líder conservador já havia dado sinais de uma estranha guinada à esquerda, definindo a erradicação da pobreza como seu principal objetivo – incluindo manter os programas sociais outrora criticados por ele –, e dizendo que não pretende privatizar empresas estatais, e que faria uma consulta nacional sobre o pagamento da dívida com os fundos abutre – depois de defender, durante todo 2014, que a economia argentina não se recuperaria se não fosse quitada a dívida.
Cerca de 74% dos argentinos participaram das eleições primárias, um percentual menor que os anos anteriores, mas que foi considerado bom pela maioria dos analistas, tendo em vista que as fortes chuvas que castigaram a zona central do país – a que inclui alguns dos principais centros urbanos, como Buenos Aires, Córdoba e Rosário – impediram muitos eleitores de exercer o seu voto.
O “fim” do kirchnerismo
É o fetiche da grande imprensa argentina, repercutido pelos analistas internacionais que acreditam nela, mas está longe de ser uma realidade, pelo menos por enquanto.
Daniel Scioli e um vínculo que buscará reforçar nas próximas semanas, pensando em vencer as eleições de outubro. (foto: AFP)
As contradições dos que sustentam essa tese são o indício mais importante de que ela não se sustenta.
Quando se deu o Massa como força política nacional, em 2013, o argumento era que Massa roubava votos do kirchnerismo dissidente, e que levaria a uma disputa entre três frentes que não superariam os 30% cada uma.
Realmente, segundo pesquisas de meados de 2014, Massa chegou a ser a segunda força política argentina, mas roubando votos de Macri. Os grandes meios de comunicação (especialmente o Clarín), que até então viam com bons olhos o surgimento de uma terceira via, passaram a defender mais abertamente a importância de manter a força política de Macri para equilibrar politicamente a Argentina, e o quadro se reverteu desde então.
Em janeiro de 2015, depois da morte do promotor Alberto Nisman, novamente foi decretado o fim do kirchnerismo, devido a uma sentença já decretada do envolvimento do governo no crime. Dois meses depois, quando a Justiça descartou oficialmente essa possibilidade, o apoio a Cristina e ao governo voltaram a subir, e as teorias conspirativas governistas passaram a falar num assassinato para culpar a presidenta e ajudar a oposição – o que também carece de evidências concretas.
Finalmente, na medida em que as primárias se aproximavam e as pesquisas indicavam uma clara vitória de Scioli, os analistas passaram a defender a imagem de kirchnerista moderado do atual governador da Província de Buenos Aires, indicando que sua chegada à Casa Rosada significaria uma guinada ao centro.
Máximo Kirchner tenta vencer as eleições na Província de Santa Cruz, para ser o futuro a longo prazo do kirchnerismo. (foto: Telam)
Evidentemente, Scioli não é um político de esquerda. Poderia ser melhor definido como um desenvolvimentista simpático às políticas de austeridade, e não deveria surpreender ninguém se chega ao governo trazendo as mesmas reformas que Dilma iniciou em seu segundo mandato – e que causaram frustração dos movimentos sociais brasileiros a da base popular do PT.
Porém, sua votação nas primárias leva a supor que precisará de Cristina para chegar à vitória. A atual presidenta argentina tem mostrado um apoio ambíguo pelo candidato da FpV. Por um lado, foi ela quem o oficializou como candidato único do kirchnerismo, tirando da briga o atual ministro do Interior, Florencio Randazzo – considerado mais de esquerda, e mais bem visto pelos movimentos sociais. Por outro, sua figura esteve ausente durante a campanha até o momento, e há quem atribua a isso boa parte desses 26% de abstenção nas primárias, e uma votação de Scioli abaixo do histórico do kirchnerismo – Cristina obteve 51% nas primárias de 2011.
Em seu discurso após a vitória, Scioli deixou claro qual será seu próximo passo: “queria agradecer, principalmente, à doutora Cristina Fernández de Kirchner, que me deu a missão e a honra de continuar um projeto de país baseado em maior justiça social, fortalecimento da nossa indústria e mais oportunidades para todos os argentinos”. Ou seja, é preciso se reaproximar de Cristina, onde está a base eleitoral que lhe permitiria vencer as eleições – no primeiro ou no segundo turno –, e com a qual estaria teoricamente comprometido durante um possível mandato.
Outro indício de que os votos em disputa dentro do kirchnerismo também são os que estão mais à esquerda é o resultado de Máximo Kirchner nas primárias para governador da Província de Santa Cruz, no extremo sul do país. Aos 38 anos, o filho de Néstor e Cristina obteve 44,5% dos votos. Se ratificar seu favoritismo em outubro conseguiria o cargo que lhe poderia projetar como presidenciável, e como – esse sim – herdeiro natural do kirchnerismo num futuro próximo.
Carta Capital
Nenhum comentário:
Postar um comentário