sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Senador Delcídio do Amaral: o flagrante virou eterno, por Urariano Mota


SEX, 27/11/2015 - 11:10




Está tudo muito claro, sem dúvida o senador Delcídio do Amaral cometeu crimes. Mas se observarmos bem, a prisão do primeiro senador no tempo democrático se deu em circunstâncias, digamos, excepcionais. Antes, na ditadura, os atos eram mais simples: cassavam-se mandatos, fechava-se o Congresso que desejava ser soberano, prendiam e sumiam com os corpos de parlamentares. Mas nesta semana, a prisão de um senador no exercício do mandato ganhou cores mais, como direi, absurdas da esperteza nacional. 

Um crime que necessitava ser flagrante, virou contínuo, eterno, ou permanente. A flagrância virou fragrância, mau cheiro de coisa mais podre. Mas como?

Quando pesquiso, sou informado de que a decisão da 2ª. Turma do STF se baseou no parágrafo 2º do artigo 53 da Constituição Federal. O dispositivo diz, ou dizia, a esta altura não sabemos ao certo, que parlamentares não podem, ou não podiam ser presos, a não ser em casos de “flagrante de crime inafiançável”. No entanto, de acordo com o ministro Teori Zavascki, o senador Delcídio passou a ser acusado de integrar uma organização criminosa, ou seja, segundo ele, um crime permanente. E para coroar o enquadramento legal., o ministro citou outro ministro, um voto do ministro Gilmar Mendes onde se fala que, em casos de crime permanente, o flagrante pode ser feito a qualquer tempo. Lindo, sábio, erudito e maravilhoso.

Isso quer nos fazer crer que o flagrante perdeu o significado da língua portuguesa. A saber, vamos ao dicionário: “Flagrante - substantivo masculino - Ato ou fato observado ou comprovado no momento mesmo em que ocorre; ação notada e/ou registrada no momento da ocorrência”. Ou como adjetivo: “visto ou registrado no próprio momento da realização”. Perdoem se buscamos o sentido das palavras na tradição e uso corrente da língua portuguesa.

Perdoem, porque, pelo visto, o poder de interpretar palavras e situações é de uso exclusivo do Supremo Tribunal Federal, e do procurador Rodrigo Janot., não vamos cometer um crime de lesa-autoria. Melhor, de lesa-majestade. Esse poder de redefinição já havíamos notado desde o tempo da teoria do “domínio do fato”, no julgamento do chamado mensalão, lembram? A partir dali, o ato arbitrário de interpretar chegou ao perigoso terreno de que para condenar um réu, bastava a presunção de culpa. Simples. Se ele não furtou, teria contribuído para o furto. E se não contribuiu de modo direto, teria contribuído indireto. E se não contribuiu indireto é porque o réu seria tão esperto, que nem deixou pistas. Portanto, condene-se. Eu não invento, consultem a memóriaa, e me falem se assim não foi. 

Agora, neste último caso, de livre interpretar a constituição federal, na prisão do senador Delcídio do Amaral, chamo a atenção para a professora Margarida Lacombe, da UFRJ. Ela é uma pessoa que alia inteligência, cultura, conhecimento e coragem. Vale a pena ouvi-la, num trechinho final do programa Em Pauta da Globo News no dia em que o senado confirmou a nova definição de flagrante do STF.

“Por mais impactante que seja tudo isso, que de fato é, quando a gente escuta a gravação, a gente deve pensar por que essa decisão de hoje, do Supremo Tribunal Federal, chancelada pelo Senado Federal, pode provocar enquanto precedente pro nosso país? A Constituição Federal, em termos da imunidade parlamentar, tratando-se de uma democracia, prevê que um parlamentar somente pode ser preso diante de flagrante delito ou de crime inafiançável. No meu modo de ver, eu acho que o Supremo Tribunal Federal pecou nesses dois requisitos, que são os únicos possíveis pra exceção, que é a questão da flagrância, do flagrante delito, ou da inafiançabilidade. O ministro Teori Zavascki falou no estado de flagrância. Esse estado de flagrância é a fórmula que eles mais ou menos encontraram pra enfrentar essa questão. E tentar caracterizar esse ato todo, esse fato que a gravção transmite, como crime de organização criminosa, que eles entendem, a decisão do Supremo, que é um crime permanente. Como de qualquer organização criminosa, ela seria composta por quatro ou mais pessoas, como diz a lei de 2013, que foi uma lei até criada depois do mensalão pra criar esse tipo de organização criminosa, que ali só se falava de quadrilha. Então quatro ou mais pessoas que têm vontade em comum, os mesmos desígnios de vontade, e essa organização seria estruturada e organizada em termos com a básica de divisão de tarefas. Então eles têm que juntar quatro ou mais pessoas, e aí foram buscar até... o Delcídio, o banqueiro, o advogado e o assessor, o chefe de gabinete, que era até uma figura, que eles dizem ali que tinha uma posição privilegiada.. enfim, pra compor esses quarto integrante, pra caracterizar a organização criminosa, e com isso poder desenvolver essa ideia de um estado de flagrância. Eu vejo isso muito complicado, em termos técnicos. Como é que se pode sustentar esses estado de flagrância, apesar da gente ter visto que houve uma situação bastante específica dele estar ali arrumando, vendendo facilidades pra organizar, enfim, a delação premiada do Nestor Cerveró? Então eu acho que o Supremo Tribunal Federal foi atingido na sua reputação, na medida em que os vídeos mostram que o Delcídio dizia que teria um acesso muito fácil aos ministros, cita o nome do próprio Teori Zavascki, como dizendo assim, ‘ah, eu já estive com ele, e também já estive com o Dias Toffoli”, sugerindo que já tinha havido algum tipo de facilidade, e o Supremo Tribunal Federal reagiu. Eu acho que reagiu nos termos que a gente diz, decidiu com base em razões de segunda ordem. Ou seja, (mais) com uma estabilidade institucional, do que propriamente da matéria”.

Notem que para a proposta de Delcídio dar certo, Cerveró precisaria ser solto antes, pois só então poderia fugir. Mas precisaria conseguir um habeas corpus. E para isso, bom, Delcídio teria que conversar com alguns ministros. Ele afirmou isso, na gravação da conversa que seguiu como prova. Daí que a reação do Supremo, como assinala a professora Margarida Lacombe, se deu por razões de segunda ordem. “Não somos estes que Delcídio falou”, teriam querido dizer. E se podemos fazer uma análise psicológica, à luz da experiência de escritor, digo que a voz de Gilmar Mendes fraqueja, quando nega a fala do senador. Gilmar perde o ar de imperador, arrogante, de queixo erguido. O mesmo se dá com Dias Toffoli, quando ele acompanha a negação na base de, o que o senador mentiu pra Gilmar Mendes, também mentiu pra mim. “Me põe nessa, por favor”, parece dizer.

E concederam o pedido por Rodrigo Janot, que cometeu este arrazoado:

“A Carta Magna não pode ser interpretada de modo a colocar o Supremo Tribunal Federal, intérprete e guardião máximo da Constituição Federal, em posição de impotência frente à organização criminosa que se embrenhou dentro do Estado...

A interpretação literal do § 2º do art. 53, descontextualizada de todo o sistema, transformaria a relevante garantia constitucional da imunidade parlamentar em abrigo de criminosos, os quais vêm sabotando relevante investigação criminal e instrução processual em curso"

Ou seja, como não se pode mudar a Constituição Federal com uma penada, muda-se a sua interpretação. O poder de interpretar é a interpretação de quem estiver no poder, judiciário. O que significa: contra quem se aliar, não importa quão distante, da esquerda, toda interpretação é livre, até mesmo contra a língua portuguesa. O que concluímos, enfim: salve-se quem puder. A constituição muda conforme o vento político da oposição.

*Publicado, originalmente, no Vermelho


Jornal GGN

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