No seminário sobre Direitos Humanos, Justiça e  Memória, realizado esta semana na Faculdade de Direito da Universidade  de São Paulo, organizado pela Faculdade Latinoamericana de Ciencias  Sociais (Flacso) e pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da  República, pudemos viver momentos de uma intensidade emocional  incomparáveis. Não seria de se estranhar, sabendo o que vários países  desde continente viveram em um passado recente, sob regimes militares  que implantaram o terror.
Desta vez o momento foi especialmente  emotivo porque a ministra Maria do Rosário, em nome do Estado  brasileiro, entregou as cinzas de um cidadão espanhol de nascimento e de  cidadania venezuelana, chamado Miguel Sabal Nue, aos seus três filhos. A  cerimônia foi ainda mais emotiva, porque até recentemente circulava a  versão da ditadura militar de que Miguel teria se suicidado. Maria do  Rosario expressou aos filhos o pedido de perdão do Estado brasileiro  pelo que havia sido feito com seu pai.
A tenacidade de familiares  das vítimas da ditadura na pesquisa, permitiu encontrar nos arquivos do  Doi-Codi a ficha de Miguel, com a letra T em vermelho, que indicaria  que seria um “terrorista”. Apesar de não estar vinculado a atividades de  esquerda, de ser um professor, Miguel foi preso, torturado e finalmente  assassinado pelos órgãos da ditadura militar. Seus restos foram  encontrados em uma das ossadas que foram descobertas e entregues suas  cinzas para seus filhos.
Estes expressaram seus sentimentos de  filhos que, desde pequenos não tinham podido conviver com o pai e que  tinham tudo que conviver com a imagem de seu eventual suicídio, sem  poder entender o que havia passado. Claro que nenhuma reparação cura as  feridas de uma perda dessas, mas o Estado brasileiro fez o que pode para  buscar a verdade do ocorrido e por isso recebeu o reconhecimento dos  filhos de Miguel, que disseram que jogariam ao vento do Mont Juic, em  Barcelona, de onde era proveniente seu pai, suas cinzas.
O  seminário teve outros momentos de grande densidade, pela experiência  transmitida por Daniel Filmus, senador e ex-Ministro de Educacao da  Argentina, assim como a expoente mais importante da luta dos argentinos  pelos direitos humanos, Estela Carlotto, presidente do movimento das  Avós da Praça de Maio.
Expressão direta desse movimento foi a  intervenção de outro argentino, Juan Cabandié, atual deputado pela  cidade de Buenos Aires. Juan é o que se chama lá de neto recuperado, um  grupo que já conta com 105 netos, que tiveram sua verdadeira identidade  recuperada pelo movimento das Avós. Sao pessoas cujos pais foram presos e  assassinados pela ditadura militar, que encaminhou-os as crianças,  depois de assassinar seus pais, para outras famílias, que os educaram  com identidade falsa.
No caso de Juan, as explicações que lhe  eram dadas sobre eles nunca os tinha satisfeito, até que um dia, quando  já tinha 25 anos,  foi bater na porta da sede do Movimento das Avós e  lhes manifestou sua suspeita de que ele seria filho de algum  desaparecido. Ao cabo de três anos, Juan teve o retorno, com a  identificação dos seus verdadeiros pais e seu nome real.
Seus  pais foram um jovem casal de estudantes, ele de 19, ela de apenas 16,  presos pela ditadura e executados, assim que ele nasceu, dado que sua  mãe foi detida já grávida. Foi a partir desse momento que, segundo o  depoimento de Juan, ele recuperou sua liberdade e sua alegria, mesmo  sabendo do destino trágico de seus pais nas mãos da ditadura.
Tomar  consciência de sua verdadeira identidade era, ao mesmo tempo, tomar  consciência política do que a Argentina estava vivendo e havia vivido, o  que o levou imediatamente à militância política, por meio da qual ele é  hoje um jovem e combativo parlamentar do partido de governo.
Emir Sader   -   Carta Maior
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