14 de Setembro de 2016
Por Paulo Moreira Leite
Sabemos que o pensamento único tornou-se a verdadeira alma da mídia brasileira mas a compra de 100% do Valor Econômico pelas Organizações Globo deveria inspirar um debate sério sobre o monopólio dos meios de comunicação. É um caso para ser debatido no CADE e também no Congresso. Onde estão os parlamentares de nossas Comissões de Comunicação?, vale perguntar.
Estamos falando de concentração da propriedade -- primeiro passo para a unificação ideológica -- numa escala vergonhosa. Além de dominar a TV, aberta e a cabo, e controlar um grande número de emissoras de rádio e a segunda revista semanal semanal em circulação, um único grupo econômico terá em suas mãos uma nova fatia do mercado de jornais diários. O latifúndio inclui desde o popular Extra e agora o Valor Econômico, destinado a elite, sem falar no Globo. Também envolve o portal G-1. Imagine: as mesmas caras e bocas, repetindo os mesmos textos -- salvo leves mudanças no vocabulário--, 24 horas por dia.
É possível que esteja faltando alguma coisa na lista acima, tão grande é a relação de veículos controlados e orientados por um só partido político, a família Marinho e seus homens de confiança.
De qualquer modo, talvez seja necessário estudar o funcionamento da comunicação sob ditaduras stalinistas para encontrar um monopólio equivalente. Numa concentração dessa natureza, é apenas risível falar em concorrência ou coisa parecida. Propriedades cruzadas atravessam mercados segmentados na origem, numa concentração em escala geométrica que limita o diferente e persegue o oposto.
A experiência dos brasileiros na luta contra a ditadura militar ensina as vantagens de viver numa sociedade que oferece os serviços de uma imprensa plural. Quando o Valor foi lançado, numa sociedade Globo-Folha de S. Paulo, havia um grande jornal de economia, a Gazeta Mercantil. Enfrentava problemas administrativos graves, que o levaram a fechar as portas. Mas era líder do mercado, uma escola de competência e bom jornalismo. Chegou a ser classificado entre os 10 melhores do mundo na especialidade. Comprometido com a visão de mundo típica de seus leitores -- empresários -- defendia a economia de mercado com clareza e empenho. Mas desenvolveu um jornalismo que buscava isenção e informação de qualidade, compreendendo a necessidade de assegurar a seus repórteres a liberdade de investigar e apurar. Também tinha outra visão de mundo e de país. Enquanto as Organizações Globo apoiaram a ditadura do primeiro até o último suspiro, a Gazeta Mercantil assumiu, aos poucos, uma visão contrária, contribuindo concretamente para a democratização do país.
Em 1978, o jornal promoveu um Forum de Líderes da iniciativa privada. Arquitetado pelo diretor Roberto Muller Filho, o Forum foi convocado para debater a política econômica em vigor e se manifestar sobre a luta democrática, que chegava às ruas, em passeatas de estudantes e greves de trabalhadores. No documento final do evento, rascunhado pelos economistas Luiz Gonzaga Belluzzo e João Manoel Cardoso de Mello, o parágrafo final dizia palavras que podem parecer banais no país que se fez depois, mas eram fortes e corajosas no ambiente da época: "Defendemos a democracia por ser um sistema superior de vida, o mais apropriado para o desenvolvimento das potencialidades humanas."
Entre dez grandes empresários chamados a apoiar o documento, escolhidos em voto secreto nas entidades de classe, o que assegurou a representatividade das decisões, apenas dois se recusaram a assinar, o banqueiro Amador Aguiar, fundador do Bradesco, e Amadeu Antunes, minerador. A importância daquele evento não deve ser exagerada nem diminuída. Quatorze anos depois do golpe militar, o grande empresariado que bateu às portas dos quartéis para pedir a queda de Jango invertia o discurso e a perspectiva. Havia um jornal para noticiar e apoiar isso.
Três anos antes do Forum, o jornalista Vladimir Herzog havia sido assassinado pela tortura. A partir de 1978, o debate sobre democracia chegava à cúpula da sociedade, cortando oxigênio dos aliados irredutíveis da ditadura. Seis anos mais tarde, em 1984, a luta pela democracia produziu a campanha Diretas-Já, a maior mobilização popular da história.
Adversária dos anseios da maioria dos brasileiros, que jamais renunciaram aos valores democráticos, a Globo fez o possível para esconder o que se passava. Jogou contra. Atrapalhou como pode. Atrasou sempre que possível. Em resumo, tornou a luta pela democracia mais difícil.
A história andou para frente, apesar dela. Imagine se tivesse o monopólio que está construindo hoje.
Essa é a questão.
Brasil 247
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