Após o Brasil ultrapassar EUA, México e Peru como o país com o maior número de mortes pela Covid-19 por milhão de habitantes nas Américas, a Sputnik Brasil conversou com dois especialistas para analisar os fatores que levaram o país a esses números e como evitá-los no futuro
21 de abril de 2021
Sepultador com trajes de proteção abre covas no cemitério de Vila Formosa em São Paulo em meio à pandemia de Covid-19 (Foto: REUTERS/Amanda Perobelli)
Sputnik - Segundo o levantamento feito pela organização Our World in Data, o Brasil ultrapassou nas últimas duas semanas os Estados Unidos, o México e o Peru, se tornando o país com mais mortes por Covid-19 do continente americano em relação à sua população.
De acordo com a Our World in Data, o Brasil tem atualmente 1.756 óbitos por milhão de habitantes e ultrapassou o México no dia 7 de abril, o Peru no dia 13 e os EUA no dia 14. Segundo o levantamento, os dez países com mais óbitos para cada um milhão de habitantes das Américas são: Brasil (1.756), Peru (1.722), EUA (1.713), México (1.646), Panamá (1.434), Colômbia (1.342), Chile (1.317), Argentina (1.310), Bolívia (1.083), Equador (1.003).
Até o início de fevereiro, quando o Brasil registrava cerca de uma mil mortes por dia, ele ocupava a sétima posição do continente em óbitos proporcionais, atrás de EUA, México, Peru, Panamá, Colômbia e Argentina. Agora, com a escalada de mortes no país, que chegou a superar o número de 4 mil óbitos por dia, o Brasil foi gradualmente ganhando posições, até chegar ao topo da lista no continente.
Em entrevista à Sputnik Brasil, os especialistas Gonzalo Vecina Neto - médico sanitarista, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), fundador e primeiro diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) - e Guilherme Werneck - médico epidemiologista, professor do Instituto de Medicina Social da UERJ - são unânimes em apontar um principal responsável por esse aumento significativo dos números: o governo federal.
"O governo não atuou no sentido de impedir o início da disseminação da doença no país, minimizou o problema, investiu em medidas que não têm eficácia reconhecida, [...], não aparelhou adequadamente os hospitais para a assistência à saúde [...], o sistema de vigilância não conseguiu também ser instrumentalizado para atuar da forma mais adequada, faltaram testes, faltou organização, faltou concatenação e coordenação do Ministério da Saúde com os outros entes federativos", afirma Werneck.
Para o epidemiologista da UERJ, o país poderia ter feito muito melhor, pois "tem um Sistema Único de Saúde (SUS), pesquisadores, profissionais de saúde, um sistema de atenção básica à saúde e uma estratégia de saúde da família que poderiam ter sido chamados para atuar de forma mais efetiva no controle da pandemia".
No entanto, ele ressalta que a resposta do governo foi sempre disponibilizar menos recursos e não atuar para a prevenção. "De fato, o governo atuou a favor da disseminação do vírus na comunidade, então nós poderíamos ter feito melhor. Certamente teríamos feito melhor com qualquer outro governo que levasse a sério esse problema", opina Werneck.
Vecina, por sua vez, aponta outro exemplo importante da falta de governo, que se reflete na forma como a pandemia se dissemina pelo país, atingindo mais intensamente a população mais pobre, que não tem condições de fazer isolamento social.
"No Brasil, quem está morrendo mais é o pobre, [...] e o pobre tem que sair todos os dias na rua para buscar comida, ele não tem comida guardada em casa. O fim do auxílio emergencial, e a demora do início do novo auxílio emergencial, junto com a nova variante amazônica que está circulando violentamente no Brasil todo, criou uma tempestade perfeita", afirma Gonzalo Vecina.
Para o fundador da ANVISA, essa "tempestade perfeita" acabou determinando um aumento muito grande do número de casos e, consequentemente, do número de óbitos. Além disso, Gonzalo ressalta que o governo apresentou absoluta falta de gestão ao permitir que, "no meio do caminho", ainda ocorresse o colapso da assistência hospitalar, com falta de oxigênio, medicamentos e outros insumos, que contribuíram ainda mais para que o Brasil atingisse a marca sinistra de campeão em óbitos nas Américas.
Os dois especialistas também concordam que, para reduzir a mortalidade de Covid-19, existem dois eixos principais, que devem ser combinados: as chamadas medidas não farmacológicas, como o uso de máscaras, atenção com a higiene e isolamento social, e o avanço das campanhas de vacinação.
Para Werneck, contudo, o país não está indo bem em nenhum desses dois eixos, o que justificaria os altos números de mortalidade.
"Não há um esforço coletivo nacional para que se implemente medidas de âmbito nacional e subnacional, de restrição maior do contato físico entre as pessoas [...] e na vacinação, nós também estamos indo muito devagar, resultado de uma inação do Ministério da Saúde em relação à obtenção de doses necessárias para vacinar rapidamente a população brasileira", afirma Werneck.
Para Gonzalo Vecina, como o número de vacinas ainda é insuficiente e o programa segue muito devagar, a única opção, neste momento, são as medidas de distanciamento social.
Além disso, o ex-diretor e fundador da ANVISA afirma que é preciso olhar para exemplos bem sucedidos feitos dentro do território nacional, como aconteceu no município de Araraquara, no interior de São Paulo, que conseguiu reduzir a mortalidade e as internações no município, após implementar um lockdown.
"Araraquara, aqui no estado de São Paulo, fez um lockdown direitinho, e mostrou para o Brasil o que é um lockdown [...] que é um conjunto de ações concatenadas para fazer as atividades não essenciais pararem", comenta Vecina.
Guilherme Werneck, por sua vez, lembra que o exemplo de Araraquara é muito interessante, mas acredita que, neste momento, soluções mais localizadas têm influência limitada, e que o país deveria apostar em um lockdown nacional.
"Em pequenas cidades como Araraquara, no interior de São Paulo, obteve-se resultados significativos, mas não basta fazer isso em uma ou outra cidade, em um ou outro estado, nós precisamos fazer isso, de forma mais radical, no país inteiro, e a recomendação seria: vamos parar as atividades de forma mais radical por três semanas - 21 dias - que nós poderemos, a partir daí, observar uma melhoria e a redução substancial de casos e óbitos no país", afirma o professor da UERJ.
Sobre a questão da vacina, tanto Werneck quanto Vecina assinalam que ela é muito importante, e que o país deveria fazer um esforço para conseguir mais doses e acelerar seu programa de imunização, mas ambos ressaltam que só o imunizante não é suficiente e que as pessoas terão que manter as chamadas medidas não farmacológicas por muito tempo.
"A vacinação, ela ainda demora um tempo para alcançar as coberturas vacinais, ou seja, o percentual da população brasileira completamente vacinada, o que só deve acontecer no início do ano que vem. Até lá, é preciso que outras medidas sejam mantidas e implementadas simultaneamente, entre elas as restrições do contato entre as pessoas, o distanciamento social, e as medidas de proteção individual. Somente com a articulação entre essas duas ações é que nós poderemos enfrentar a pandemia de forma mais adequada", opina Werneck.
Já Vecina lembra que as medidas não farmacológicas vão continuar imperando por bastante tempo, pois, além de vacinar toda a população adulta, o que só deverá acontecer no início do ano que vem, o Brasil também terá que começar a imunizar as crianças e adolescentes, que compreendem cerca de 50 milhões de pessoas, assim que todos os testes forem concluídos e a imunização for autorizada. Ainda assim, o especialista ressalta que há muitas incertezas em relação à proteção e à imunidade conferidas pelas vacinas contra a COVID-19.
"Só a partir das crianças e jovens vacinados, é que nós vamos poder relaxar, dependendo da eficácia do que nós tivermos feito com as vacinas. Nós vamos ter que observar, nós não sabemos quanto tempo dura a imunidade conferida pelas vacinas que nós utilizamos. Então, no meio do caminho, ainda existem alguns obstáculos", conclui Vecina.
Brasil 247 - Sputnik
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