O superávit primário representa retirada de recursos reais da economia, portanto com efeito contracionista da atividade econômica, e a simultânea devolução à economia de recursos equivalentes na forma de juros pagos aos detentores de títulos da dívida pública, com efeito supostamente expansionista. Contabilmente os dois efeitos deveriam neutralizar-se, possibilitando algum nível de crescimento econômico dependendo do déficit nominal. Entretanto, no processo econômico real, os fatos são um pouco mais complexos.
O efeito expansionista dos juros apenas ocorrerá se os receptores desses juros, ou seja, os titulares da dívida pública os aplicarem na atividade econômica real mediante investimentos produtivos ou outras compras de produtos e serviços. Isso não acontece. A maior parte dos juros “pagos” com superávit primário retorna ao mercado financeiro na forma de aplicações improdutivas no over, rendendo os conhecidos juros básicos estratosféricos arbitrados pelo Banco Central.
O resultado líquido é contração da economia ou sua estagnação. Isso acontece mesmo quando o governo opera com déficit nominal, isto é, quando o superávit primário não é suficiente para pagar toda a conta dos juros da dívida pública. A razão, mais uma vez, são as taxas básicas de juros exorbitantes sobre aplicações financeiras à vista. Disso resulta o que a professora Maria da Conceição Tavares e e um de nós chamamos, num livro ainda nos idos dos 80 do século passado, de “moeda financeira”.
O Banco Central brasileiro opera com duas moedas. A moeda dos pobres, vulnerável à inflação, e a “moeda financeira” dos ricos, que deixa a inflação longe, para trás. Muitos economistas não levam em conta essa distinção porque não conseguem ver diferenças qualitativas entre as duas moedas já que existe overnight no mundo inteiro, e nós não seríamos um caso à parte. Somos. A “moeda financeira” existe a partir do momento em que a taxa do over supera sistematicamente, em muito, a inflação. É o nosso caso, há décadas.
Quanto maior é o déficit nominal resultante de gasto público efetivo(-3,3% em 2009), maior o crescimento do PIB (7,53%)
O mistério em torno da taxa de juros básica brasileira não é que ela seja tão alta por tanto tempo mas porque ainda existe quem invista dinheiro em produção no Brasil. E a explicação para isso passa por outra sutiliza. Imagine que um empresário tenha R$ 100 milhões disponíveis em caixa. Se ele fechar sua indústria e colocar o dinheiro no over ela ganhará R$ 11 milhões nominais no ano. Entretanto, se ele usar esse dinheiro para investir em equipamentos, insumos e salários, ele poderá ganhar muito mais.
Ao longo do ano os salários não aumentam, assim como boa parte dos insumos afetados por salários. São pagos na moeda comum. Em contrapartida os recursos comprometidos com salários e com insumos e equipamentos “rolam” diariamente no over rendendo juros reais, e apenas mobilizados em intervalos discretos (no caso dos salários, mensais). Com isso os juros do over tornam-se uma base mínima de rentabilidade, sendo que a rentabilidade efetiva acaba sendo um múltiplo disso. Numa palavra, o empresário não sai do negócio para tornar-se rentista porque o over lhe permite ganhar na produção ainda mais que a pura rentabilidade financeira.
Entretanto, há um limite para esses ganhos efetivos. É a situação da demanda. Se a política fiscal, através da realização recorrente de superávits primários, força a contração da atividade econômica e, portanto, da demanda, o empresário não vai querer produzir para as prateleiras. Para de investir e, na pior das hipóteses, vende ou fecha a fábrica. A venda para um conglomerado estrangeiro de marca é o mais atrativo, pois o comprador se encarrega de fechar a fábrica para transformá-la num braço comercial de seu próprio negócio “global”.
Não há nenhuma surpresa na taxa de crescimento do PIB de 0,2% no primeiro trimestre. Impressionante mesmo é por que isso não aconteceu antes. Mais impressionante ainda é se o PIB crescer alguma coisa, ou se não decrescer este ano. Essa não é uma questão de pessimismo ou otimismo. É uma questão aritmética. Ao longo dos últimos sete anos, o efeito cumulativo do superávit primário – sim, ele é cumulativo – representou mais ou menos uma contração de 10% do PIB na atividade econômica. É para derrubar qualquer economia.
A recuperação espetacular da economia no primeiro ano depois da queda de 2009 se deveu à única operação realmente inteligente da Fazenda nos últimos tempos: a injeção na economia de R$ 180 bilhões, em dois anos, de recursos do Tesouro através do BNDES. Pela primeira vez desde a crise da dívida externa, o Governo brasileiro não pediu licença às agências multilaterais ou ás agências de risco para tomar a iniciativa. O resultado foi o crescimento de 7,5% em 2010.
Ainda há tempo de salvar o crescimento do PIB neste ano? Gostaria muito, mas não acredito. A economia está em recessão e, nessa situação, só a realização de déficits nominais dentro da velha cartilha keynesiana poderia estimular a demanda e o investimento. A fórmula da demanda interna – aumento do salário mínimo, expansão da bolsa família, aumento do crédito familiar, grandes obras da Copa – está esgotada. O que seria necessário são amplos investimentos públicos do lado da oferta, sobretudo de infraestrutura. Para este ano não há tempo. Que venha um governo renovado.
J. Carlos de Assis - Economista, doutor em Engenharia da Produção pela Coppe/UFRJ, professor de Economia Internacional da UEPB
Onildo Veloso P. Netto - Graduando em Relações Internacionais pela UEPB
Blog do Luis Nassif - Jornal GGN
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