seg, 29/09/2014 - 10:37
do Valor
Dilma e o terror
Por Sergio Leo
"O uso da força é incapaz de eliminar as causas profundas dos conflitos", declarou a presidente Dilma Rousseff, na Assembleia Geral das Nações Unidas, quando dedicou 70% de seu discurso a assuntos internacionais e 30% a um balanço otimista da gestão petista no Brasil.
"Gente, vocês acham que bombardear o Isis resolve o problema?", disse ela a jornalistas, mais tarde, referindo-se ao grupo terrorista mais conhecido hoje como Estado Islâmico. A pergunta, retórica, só aceita um "não" como resposta.
É possível listar episódios em que Dilma tropeçou na própria língua, como recentemente ao dizer que "papel de jornalista não é investigar" (disse e corrigiu-se: não condenava investigações por jornalistas, apenas queria lembrar que elas não têm valor legal).
Dilma condenou ataques aéreos sem permissão da ONU
Mas, como esclareceu o ministro Luiz Alberto Figueiredo, não havia como interpretar a manifestação de Dilma na ONU como um apoio ao Estado Islâmico, o bem organizado grupo terrorista que controla parte do Iraque e da Síria.
Dilma condenou os ataques aéreos ao Estado Islâmico sem autorização da ONU, lembrando que o uso unilateral da força para eliminar potenciais ameaças à paz mundial fracassou no Afeganistão, no Iraque e na Líbia. No lugar de regimes de força foram deixados Estados falidos e celeiros de terroristas que espalharam instabilidade no Oriente Médio. Ao mencionar o conflito Israel-palestinos em Gaza, ela fez questão de acrescentar: "repudiamos sempre o morticínio e agressão dos dois lados" - frase que opositores passaram a interpretar, com equivocado entusiasmo, como referente ao ataque dos EUA aos terroristas.
O fracasso da ação armada do "Ocidente" contra reais ou inventadas ameaças terroristas fez o Nobel em economia Joseph Stiglitz, ainda em 2008, calcular em US$ 3 trilhões o custo das guerras malsucedidas no Iraque e no Afeganistão. Segundo estudo da Brown University, a violência diretamente relacionada a esses conflitos matou, nos primeiros dez anos de intervenção americana, pelo menos 132 mil civis, 12 mil deles crianças afegãs.
O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, sabedor dessa contabilidade macabra, prometeu reduzir a presença militar americana e relutou em envolver os EUA em novos combates - o que lhe rendeu ataques virulentos da oposição conservadora e até fogo amigo de sua ex-secretária de Estado, Hillary Clinton, que, há dias, atribuiu o fortalecimento do Estado Islâmico à falta de maior apoio americano à oposição síria moderada.
O ataque ao Estado Islâmico é tema eleitoral nos EUA, e até opositores sírios desconfiam que a ação americana tenha fôlego curto, por responder mais a motivações internas que de política externa, às vésperas de eleições legislativas que ameaçam a gestão Obama.
Países vizinhos como Turquia e Índia apontam para o risco de ações que apenas empurrem os militantes a refúgios de onde seguirão com atos de terror na vizinhança.
Em artigo recente, o ex-ministro de Relações Exteriores da Austrália Gareth Evans mostrou a dificuldade em eliminar os terroristas no território fragmentado da Síria e Iraque, com o apoio de malpreparados militares iraquianos e curdos e de uma pouco confiável oposição síria. Mais que isso, sabedor de que, diferentemente da Al Qaeda, o Estado Islâmico instala-se em centros urbanos, onde opera como um arremedo de Estado nacional, Evans vê grande risco de os ataques criarem vítimas civis, fomentando apoio a terroristas.
Figueiredo deixou claro que as elípticas entrevistas de Dilma reafirmam a tese do Itamaraty sobre a necessidade de "diálogo", não com os degoladores de inocentes, mas
todos os atores estatais relevantes para a estabilidade da região, alguns com posições aparentemente irreconciliáveis. É inconcebível, por exemplo, uma estratégia para acalmar a região sem adesão do Irã xiita, visto como rival pela hegemonia no Oriente Médio pelos árabes sunitas do Conselho de Cooperação do Golfo (alguns deles ex-protetores de extremistas que hoje combatem ao lado dos EUA). Goste-se ou não, como lembra Evans, será preciso incluir o ditador Bashar Al-Assad na conversa.
Quase 200 ataques aéreos ao Estado Islâmico no Iraque, onde os EUA têm apoio do Exército local, não o enfraqueceram. Na Síria, as bombas sobre fontes de receita dos terroristas, como refinarias, podem ter maior impacto, ao custo de deixar para trás terra arrasada, sem eliminar de fato a ameaça do terror.
É arriscado armar a oposição síria, como querem alguns falcões nos EUA e Obama reluta em fazer. O apoio aos heroicos resistentes à invasão da União Soviética no Afeganistão resultou na Al Qaeda de Bin Laden. Milícias armadas para combater o ditador Muamar Gadafi na Líbia são hoje bandidos que levaram o terror a Mali e seguem combatendo tropas francesas por lá.
Os ataques aéreos levam o Estado Islâmico a avançar próximo à fronteira com a Turquia, de onde partiram nos últimos dias 140 mil refugiados. O respeitado estrategista indiano Brahma Chelaney, ex-assessor do Conselho de Segurança Nacional da Índia, também em artigo publicado na semana passada, alertou para o risco de Obama envolver-se em uma guerra permanente contra um número crescente de inimigos que a própria guerra ajuda a criar. (O Estado Islâmico, lembra ele, era "amigo", contra Assad, até arremeter contra bases americanas e começar a decapitar homens brancos).
Os indianos, diz Chelaney, veem, nas tratativas americanas com atores na região, como talibãs afegãos abrigados no inconfiável Paquistão, indicações de que o objetivo maior é confinar os conflitos ao Oriente Médio, região fadada, assim, à permanente instabilidade.
Ao Brasil, exatamente por sua condição de emergente sem fortes recursos de poder, resta o papel de se manifestar sempre que a força bruta se mostra como uma solução (falsa) em comparação à difícil busca de uma solução permanente e multilateral. É essa a tradição do Itamaraty, seguida por Dilma Rousseff na semana passada, na assembleia da ONU.
Sergio Leo é jornalista e especialista em relações internacionais pela UnB. É autor do livro "Ascensão e Queda do Império X", lançado em 2014. Escreve às segundas-feiras
do Valor
Dilma e o terror
Por Sergio Leo
"O uso da força é incapaz de eliminar as causas profundas dos conflitos", declarou a presidente Dilma Rousseff, na Assembleia Geral das Nações Unidas, quando dedicou 70% de seu discurso a assuntos internacionais e 30% a um balanço otimista da gestão petista no Brasil.
"Gente, vocês acham que bombardear o Isis resolve o problema?", disse ela a jornalistas, mais tarde, referindo-se ao grupo terrorista mais conhecido hoje como Estado Islâmico. A pergunta, retórica, só aceita um "não" como resposta.
É possível listar episódios em que Dilma tropeçou na própria língua, como recentemente ao dizer que "papel de jornalista não é investigar" (disse e corrigiu-se: não condenava investigações por jornalistas, apenas queria lembrar que elas não têm valor legal).
Dilma condenou ataques aéreos sem permissão da ONU
Mas, como esclareceu o ministro Luiz Alberto Figueiredo, não havia como interpretar a manifestação de Dilma na ONU como um apoio ao Estado Islâmico, o bem organizado grupo terrorista que controla parte do Iraque e da Síria.
Dilma condenou os ataques aéreos ao Estado Islâmico sem autorização da ONU, lembrando que o uso unilateral da força para eliminar potenciais ameaças à paz mundial fracassou no Afeganistão, no Iraque e na Líbia. No lugar de regimes de força foram deixados Estados falidos e celeiros de terroristas que espalharam instabilidade no Oriente Médio. Ao mencionar o conflito Israel-palestinos em Gaza, ela fez questão de acrescentar: "repudiamos sempre o morticínio e agressão dos dois lados" - frase que opositores passaram a interpretar, com equivocado entusiasmo, como referente ao ataque dos EUA aos terroristas.
O fracasso da ação armada do "Ocidente" contra reais ou inventadas ameaças terroristas fez o Nobel em economia Joseph Stiglitz, ainda em 2008, calcular em US$ 3 trilhões o custo das guerras malsucedidas no Iraque e no Afeganistão. Segundo estudo da Brown University, a violência diretamente relacionada a esses conflitos matou, nos primeiros dez anos de intervenção americana, pelo menos 132 mil civis, 12 mil deles crianças afegãs.
O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, sabedor dessa contabilidade macabra, prometeu reduzir a presença militar americana e relutou em envolver os EUA em novos combates - o que lhe rendeu ataques virulentos da oposição conservadora e até fogo amigo de sua ex-secretária de Estado, Hillary Clinton, que, há dias, atribuiu o fortalecimento do Estado Islâmico à falta de maior apoio americano à oposição síria moderada.
O ataque ao Estado Islâmico é tema eleitoral nos EUA, e até opositores sírios desconfiam que a ação americana tenha fôlego curto, por responder mais a motivações internas que de política externa, às vésperas de eleições legislativas que ameaçam a gestão Obama.
Países vizinhos como Turquia e Índia apontam para o risco de ações que apenas empurrem os militantes a refúgios de onde seguirão com atos de terror na vizinhança.
Em artigo recente, o ex-ministro de Relações Exteriores da Austrália Gareth Evans mostrou a dificuldade em eliminar os terroristas no território fragmentado da Síria e Iraque, com o apoio de malpreparados militares iraquianos e curdos e de uma pouco confiável oposição síria. Mais que isso, sabedor de que, diferentemente da Al Qaeda, o Estado Islâmico instala-se em centros urbanos, onde opera como um arremedo de Estado nacional, Evans vê grande risco de os ataques criarem vítimas civis, fomentando apoio a terroristas.
Figueiredo deixou claro que as elípticas entrevistas de Dilma reafirmam a tese do Itamaraty sobre a necessidade de "diálogo", não com os degoladores de inocentes, mas
todos os atores estatais relevantes para a estabilidade da região, alguns com posições aparentemente irreconciliáveis. É inconcebível, por exemplo, uma estratégia para acalmar a região sem adesão do Irã xiita, visto como rival pela hegemonia no Oriente Médio pelos árabes sunitas do Conselho de Cooperação do Golfo (alguns deles ex-protetores de extremistas que hoje combatem ao lado dos EUA). Goste-se ou não, como lembra Evans, será preciso incluir o ditador Bashar Al-Assad na conversa.
Quase 200 ataques aéreos ao Estado Islâmico no Iraque, onde os EUA têm apoio do Exército local, não o enfraqueceram. Na Síria, as bombas sobre fontes de receita dos terroristas, como refinarias, podem ter maior impacto, ao custo de deixar para trás terra arrasada, sem eliminar de fato a ameaça do terror.
É arriscado armar a oposição síria, como querem alguns falcões nos EUA e Obama reluta em fazer. O apoio aos heroicos resistentes à invasão da União Soviética no Afeganistão resultou na Al Qaeda de Bin Laden. Milícias armadas para combater o ditador Muamar Gadafi na Líbia são hoje bandidos que levaram o terror a Mali e seguem combatendo tropas francesas por lá.
Os ataques aéreos levam o Estado Islâmico a avançar próximo à fronteira com a Turquia, de onde partiram nos últimos dias 140 mil refugiados. O respeitado estrategista indiano Brahma Chelaney, ex-assessor do Conselho de Segurança Nacional da Índia, também em artigo publicado na semana passada, alertou para o risco de Obama envolver-se em uma guerra permanente contra um número crescente de inimigos que a própria guerra ajuda a criar. (O Estado Islâmico, lembra ele, era "amigo", contra Assad, até arremeter contra bases americanas e começar a decapitar homens brancos).
Os indianos, diz Chelaney, veem, nas tratativas americanas com atores na região, como talibãs afegãos abrigados no inconfiável Paquistão, indicações de que o objetivo maior é confinar os conflitos ao Oriente Médio, região fadada, assim, à permanente instabilidade.
Ao Brasil, exatamente por sua condição de emergente sem fortes recursos de poder, resta o papel de se manifestar sempre que a força bruta se mostra como uma solução (falsa) em comparação à difícil busca de uma solução permanente e multilateral. É essa a tradição do Itamaraty, seguida por Dilma Rousseff na semana passada, na assembleia da ONU.
Sergio Leo é jornalista e especialista em relações internacionais pela UnB. É autor do livro "Ascensão e Queda do Império X", lançado em 2014. Escreve às segundas-feiras
Jornal GGN
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