segunda-feira, 29 de setembro de 2014

De que lado tu tá?


 
29 de setembro de 2014

por Paulo Moreira Leite

Quando falta uma semana para o primeiro turno, Luciana Genro não disse de que lado está numa eleição que não tem chance de vencer


Luciana Genro certamente vai deixar a campanha presidencial de 2014 como uma das revelações do primeiro turno.

A candidata do PSOL calou o discurso de mudanças de Eduardo Jorge, ontem, ao lembrar sua participação, subordinada, em governos conservadores, a começar pelo PSDB de José Serra, em São Paulo, explicando que vivemos numa sociedade dividida em classes, na qual é preciso escolher um lado.

No debate no SBT, Luciana Genro discutiu política econômica para fazer uma pergunta curta e direta para Marina Silva: “Tu és a segunda via do PSDB?” Diante da firmeza evasiva que tem pontuado as respostas da candidata do PSB, Luciana Genro acrescentou: “Não dá, Marina. Tem que escolher um lado.” Desta vez, foi ainda mais clara: lembrou que existe “o lado do capital e o lado dos trabalhadores.” No debate promovido pela Igreja Católica, Luciana desvendou a hipocrisia do discurso moralista de Aécio Neves.

Na reta final da campanha, os candidatos estão escolhendo seus lados, até Levy Fidélix que ontem se definiu como centro-dirieita.

Mas resta uma pergunta:

— De que lado tu tá, Luciana Genro?, perguntou, pelo twitter, a deputada Maria do Rosário, que foi ministra dos Direitos Humanos.

A experiência de homens e mulheres ensina que o engajamento político não consiste numa declaração verbal — mas envolve compromissos políticos, dentro de cada situação concreta de perspectiva de poder.

A história não se faz por atos de vontade mas dentro de condições dadas, como ensinam estudiosos aplicados e brilhantes. É um produto da experiência das classes sociais, que forjam projetos e definem seus líderes.

No Brasil de 2014, nem é preciso ler os jornais para saber onde se encontra “o lado do Capital e o lado dos trabalhadores,” para empregar a definição que Luciana. Basta consultar o Manchetômetro.

A prioridade para o “lado do capital”, em 2014, é derrotar o acordo progressista que assumiu o governo brasileiro em 2003 e, ao longo de três mandatos consecutivos, acumulou uma série de mudanças — inegáveis — em benefício dos trabalhadores e da população pobre. Falando do essencial:

* O Brasil conseguiu sair do mapa da fome da ONU, 68 anos depois que o médico Josué de Castro escreveu a obra Geografia da Fome. Isso aconteceu depois que Lula transformou a fome em questão de Estado. Um número resume a prioridade. Em 2002, final do governo FHC, os gastos sociais do governo federal chegavam a R$ 1804 per capita. Em 2011, sem que o governo tivesse alterado um centavo na carga tributária deixada pelo PSDB — ao contrário do que afirma a turma do impostômetro — chegavam a R$ 3444, uma elevação superiour a 80% (1).

* Em dezembro de 2002, final do governo Fernando Henrique, uma cesta básica consumia 68% do salário mínimo. Hoje, consome 47,7%. Apesar do crescimento baixo em 2014 a economia gera empregos. Foram acumulados 3 milhões de novos postos de trabalho no governo Dilma e em junho de 2014 projetava-se a criação de mais 563 000. A média de desemprego no Brasil, entre 2008 e 2013, é de 6,3% — a mesma da Alemanha no mesmo período. A da Espanha é de 22%, da França, 10%, da Italia 9,5% e da Grécia 18,2%. A proporção de empregos formais dobrou entre 1994 e 2012.

* É gracioso dizer que Lula-Dilma têm a mesma política econômica do que o PSDB e Marina Silva para favorecer os bancos. Mas é falso. Nos oito anos do governo Fernando Henrique, a média da taxa de juros foi de 26,6%. No governo Lula, caiu para 14,8%. No governo Dilma, é de 9,4%. A insistência em nivelar todos os governos no mesmo patamar só beneficia quem precisa esconder o que fez, certo?

* Oferendo oportunidades nunca abertas para os brasileiros negros, excluídos entre os excluídos, o programa Pro-Uni assegurava 1 milhão de matrículas em universidades, em 2012. Se em 2002 apenas 140 estabelecimentos ofereciam educação profissional tecnologica, em 2014 esse número chegava a 562.

Esses dados formam um conjunto que mostra que a partir de 2003 o país teve um governo capaz de dar início a um conjunto de mudanças favoráveis a maioria dos brasileiros.

Um grande número de eleitores já percebeu isso, como demonstra a liderança de Dilma Rousseff nas pesquisas. Apesar do massacre absurdo que sua candidatura tem sofrido cotidianamente, uma parcela crescente de brasileiros dá sinal de que pretende resistir e defender o que conquistou de 2003 para cá.

Este é o sentido da eleição. O lado. E é nesta situação, diante de alternativas reais de poder, que é possível fazer opções.

Com argumentos muito semelhantes àqueles que Luciana Genro emprega hoje, em 1950 o Partido Comunista Brasileiro (PCB) fez campanha contra Getúlio Vargas. Pregou voto branco, com o argumento de que Vargas representava o imperialismo norte-americano. Por mais absurdo que isso possa parecer nos dias de hoje, era coerente com a lógica da Guerra Fria. Quem não era aliado incondicional de uma das superportência era considerado como inimigo, e o nacionalista Getúlio se encaixava nesta categoria tanto emWashington como em Moscou.

Nessa perspectiva, sob liderança de Luiz Carlos Prestes, o PCB se engajou numa oposição radical a Vargas e não perdia uma oportunidade para hostilizar o governo, assumindo o papel da sigla esquerdista que faz o jogo conveniente a direita.

Não enxergou conquistas importantes — como aumento do salário mínimo congelado após cinco anos, a criação da Petrobras. Na crise de 1954, seus jornais pediam a renuncia do presidente — e, depois do tiro no peito, foram atacados e empastelados por uma multidão indignada. Imagine o jornal dos comunistas atacado pelos operários. Pois foi isso o que aconteceu.

Eu era correspondente em Washington, em 2000, quando assisti a campanha pela sucessão de Bill Clinton. Não há comparação possível entre os universos políticos dos dois países, até porque não há equivalente ao Partido dos Trabalhadores nos Estados Unidos.

Mas a eleição daquele ano guarda lições úteis para o Brasil de 2014.

Havia dois concorrentes na disputa. George W. Bush, o republicano que deixou a Casa Branca como o pior presidente desde a Independência, em 1776, e o vice Al Gore, o democrata que parecia uma versão mais bem comportada e centrada do que o antecessor. Al Gore foi derrotado no tapetão da Suprema Corte, que suspedeu a recontagem de votos na Florida, medida que equivalia a dar posse a George W Bush.

O que ninguém gosta de lembrar é que havia um terceiro candidato na campanha, um advogado chamado Ralph Nader. Inventor do movimento de defesa do consumidor, quando levou executivos da industria automobilística para os tribunais, nos anos 1960, Nader tornara-se uma personalidade conhecida, simpática e respeitável. Candidato pelo Partido Verde, falar com ele era uma delícia, como pude comprovar em várias entrevistas curtas durante a campanha. Nader denunciava os bancos e as grandes empresas, falava da industria bélica sem receio, empregando uma tonalidade radical que jamais seria ouvida mesmo entre a ala mais esquerda do Partido Democrata, com ligações com o movimento sindical muito mais profundas do que eu imaginava antes de morar nos EUA. Contava com apoio entre universitários e intelectuais, inclusive Noham Chomsky.

Nós sabemos como foi a campanha norte-americana de 2000. Al Gore venceu no voto popular por meio milhão de votos. Mas era uma disputa apertada, num sistema indireto em que os partidos precisam ganhar a eleição em cada Estado para fazer maioria no Colégio Eleitoral que tem a última palavra na escolha do presidente. Foi aí que o voto em Ralph Nader teve um papel importante — para a vitória de Bush.

Com um discurso à esquerda de Al Gore ele conseguiu receber 2,8 milhões de votos no país inteiro. Se Nader também atraiu eleitores que teriam votado em Bush como segunda opção, não havia dúvida que a preferência por Al Gore era mais acentuada entre seus aliados,numa proporção de 38% contra 25%, conforme uma pesquisa feita no dia da eleição. Ninguém pode imaginar quantos votos Nader tomou de Al Gore naquele pleito, impedindo que fizesse um número maior de delegados aqui ou ali. Mas todo mundo sabe que na contagem final, a disputa concentrou-se na Flórida, de ali o estrago foi grande. Aceitando como verdadeiros os números oficiais, divulgados após uma longa batalha nas apurações, medidas judiciais de um lado e de outro, afirma-se que Bush ganhou por uma diferença de miseráveis 537 votos. Mas a apuração mostrou que Ralph Nader ficara com 97.421 votos na Florida — um oceano eleitoral que teria assegurado a Al Gore os votos de que necessitava para vencer.

O que veio a seguir todos se recordam. Bush reorientou o Estado americano para um conservadorismo puro e duro, abandonando qualquer concessão de natureza moderada deixada por Clinton. Depois do 11 de setembro, iniciou a invasão do Afeganistão e a Guerra do Iraque, terminando por gerar uma bolha financeira-militar que ajudou a cavar o túmulo da grande crise de 2008.

Claro que Ralph Nader não tem a menor responsabilidades pelas medidas estúpidas de George W Bush. Não era o presidente nem estava no comando. Mas sua responsabilidade na vitória ruinosa de George W Bush não foi esquecida pelos eleitores.

Quatro anos depois, quando voltou a disputar a eleição, ocorreu uma debandada geral. Seus 2,8 milhões de votos haviam se reduzido a 465 000. Em nova tentativa, quando Barack Obama foi eleito pela primeira vez, cresceram só um pouquinho. Mas equivaliam a quinta parte daquilo que ele recebera na campanha de 2000. Sua carreira presidencial extinguiu-se.



É importante escolher seu lado, como afirma Luciana Genro em 2014.

(1) A fonte da maioria dos dados deste texto é o levantamento “Vinte Anos de Economia Brasileira — 1994-2014,” de Gerson Gomes e Carlos Antônio Silva da Cruz




Paulo Moreira Leite é diretor do 247 em Brasília. É também autor do livro "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA, IstoÉ e Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa". 
 
 
Brasil 247



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