domingo, 4 de setembro de 2016

Volta ao passado: Brasil de costas para América Latina



1 de Setembro de 2016

Por Tereza Cruvinel


As reações do Itamaraty, chefiado por José Serra, às críticas ao golpe contra Dilma Rousseff aprofundam a crise diplomática entre o Brasil e a comunidade latino-americana, colocam o Mercosul num impasse ameaçador a seu futuro e restabelecem a política externa anterior à Nova República (1985), em que o Brasil vivia de costas para seus vizinhos e de frente para os países do Primeiro Mundo, em posição subalterna. Depois dos atritos com Venezuela, Bolívia e Equador, Serra chamou de volta o embaixador do Brasil em Havana. Seria sintomático o Brasil romper com Cuba justamente agora, quando até os Estados Unidos voltam seus olhos para a ilha, restabelecendo relações diplomáticas rompidas por 50 anos.

Acredito que pelo menos um peemedebista e aliado de Temer deve sentir-se desconfortável, o ex-presidente José Sarney. Foi em seu governo que a política externa brasileira fez uma forte inflexão em relação à América Latina. Em novembro de 1985, encerradas as ditaduras militares aqui e na Argentina, Sarney e o então presidente argentino Raúl Alfonsin firmaram a Declaração de Foz do Iguaçu, em favor da integração do Cone Sul, lançando as bases da chamada aliança estratégica entre os dois países e sepultando o passado de desconfianças recíprocas. Logo depois, em outra reunião, a convite do Brasil, em Itaipava, começou a tomar forma o Mercosul. Convidados, Uruguai e Paraguai se integraram ao bloco. Foi também no governo de Sarney que as relações diplomáticas com Cuba foram reatadas.

Tudo isso está indo por água abaixo pouco em pouco mais de 100 dias de governo Temer. E na contramão da Constituição de 1988, que em seu artigo 4º diz expressamente: “Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.” A comunidade tomou forma, com grande empenho do Brasil durante o governo Lula, com Celso Amorim no Itamaraty, através da criação da Unasul, cujo presidente, Ernesto Samper, está fazendo consultas aos demais integrantes sobre o afastamento definitivo de Dilma.

Ansioso por se apresentar ao mundo como presidente definitivo do Brasil, Temer está colhendo críticas, desprezo internacional e uma crise regional. Na quarta-feira, 31 de agosto, após a decisão do Senado, os governos da Venezuela, Bolívia e Equador decidiram chamar seus embaixadores para consultas, o que na diplomacia é um sinal amarelo. A Venezuela, com quem o caldo já vinha entornando por causa da presidência temporária do Mercosul, falou até em “congelar” as relações com o Brasil. Em nota, o Itamaraty lamentou as reações, afirmando que tais governos “ignoram os fundamentos de um Estado democrático de direito, como o que vige de maneira plena no Brasil”. Nesta quinta-feira, a reação foi mais forte em relação ao comunicado oficial de Cuba, também um tom acima de outras manifestações.

“O governo Revolucionário da República de Cuba rejeita energicamente o golpe de Estado parlamentar-judicial que se consumou contra a presidente Dilma Rousseff", diz a nota, afirmando ainda que Dilma foi deposta "sem que se apresentasse nenhuma evidência de crimes de corrupção nem crimes de responsabilidade", num “ato de desacato à vontade soberana do povo que a elegeu".

No plano regional, o novo governo foi reconhecido por Argentina, Chile e Colômbia, mas de forma fria e protocolar, sem o entusiasmo que era esperado. Os Estados Unidos emitiram um comunicado mais positivo de reconhecimento. O jornal mais influente do mundo, o New York Times, afirmou em seu editorial que "será uma vergonha se a História mostrar que ela (Dilma) estava certa". O texto lembra que muitos senadores que votaram pela cassação da ex-presidente são alvos de investigação, destaca os avanços do Brasil na era PT e aponta erros do partido e do governo Dilma. Outros jornais, mundo a fora, questionaram o impeachment, considerando-o pelo menos “polêmico”.

No caso de Cuba, se o atrito evoluir para um incidente mais grave, uma das consequências será em relação ao programa Mais Médicos, que conta com 11 mil profissionais cubanos atuando no interior do país. As prefeituras já fizeram apelos ao governo Temer, durante a interinidade, para que mantivesse o programa e os médicos cubanos, cujo atendimento é apreciado pela população. Recentemente, Cuba reivindicou correção nos contratos, em função da mudança cambial, concordando em prorrogar, até depois da Olimpíada e das eleições municipais, aqueles que venceriam em agosto. A renegociação dos valores, entretanto, não avançou. Uma nova reunião ficou marcada para este mês. Hoje o Brasil não é o único país que contrata médicos cubanos. Eles atuam em países africanos e árabes e a demanda internacional por seus serviços tem aumentado.

Já o Mercosul embrenha-se cada vez mais numa crise de difícil saída, gerada pela oposição de Serra à posse da Venezuela na presidência temporária do bloco, em sistema de rodízio previsto pelo Tratado de Ouro Preto. Como tudo tem que ser decidido por consenso, e o Uruguai não cederá, o Brasil não conseguirá expulsar ou suspender a Venezuela, ainda que tenha o apoio de Argentina e Paraguai. A Venezuela também não sairá espontaneamente, depois de ter adequado regras comerciais e tarifas para entrar no bloco. Justamente agora, quando a Bolívia estava para formalizar sua adesão. Nada será resolvido, nada avançará. Mas Serra, ninguém ignora, sempre foi crítico da existência e das regras do bloco integrador do Cone Sul, que poderia evoluir para uma construção regionalmente mais ampla, como a União Europeia. Mas isso era sonho de um tempo que acabou na quarta-feira.


Brasil 247

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