24 de março de 2015
A recusa sistemática dos pedidos de habeas corpus, tradicional recurso para garantir liberdades fundamentais e impedir a tortura, faz parte de um "populismo tosco" de um judiciário amedrontado pelos jornais
Os brasileiros que preservam a memória dos tempos da ditadura sabem da importância do habeas-corpus como instrumento legal contra a tortura. Até dezembro de 1968, o tratamento dispensado a trabalhadores e estudantes que eram aprisionados pelo aparato repressivo podia incluir cenas de brutalidade e pancadaria feia, mas tinha um limite.
Com um habeas-corpus, era possível retirar da cadeia pessoas que pudessem estar sofrendo um “constrangimento ilegal à sua liberdade” ou ainda um “dano irreparável à liberdade de locomoção.” Chamado de HC pelos íntimos, é um documento tão eficaz e precioso na defesa da liberdade individual que no início de todo curso de Direito os estudantes aprendem que é possível escrever um pedido de habeas-corpus num guardanapo de papel.
Como a ditadura batia primeiro para perguntar depois, a violência era real mas durava pouco — como você pode confirmar ouvindo testemunho de prisioneiros da época, como se vê pelo documentário “Em Busca de Iara Yavelberg”.
Com o AI-5, baixado em dezembro de 1968, a situação se modificou. O habeas-corpus foi suspenso, medida que, na prática, permitiu a liberação da tortura, que se tornou uma forma permanente de interrogatório, realizada com métodos científicos — muitos importados da Escola de Guerra do Exército Frances — por anos a fio. Então veja só.
Se hoje vivemos num país onde famílias choram seus desaparecidos e generais fogem de suas responsabilidades, homens e mulheres traumatizados não conseguem ter paz, pode-se dizer que a história de cada uma dessas pessoas poderia ter sido muito diferente se garantias democráticas como o habeas-corpus não tivessem sido suspensas. O regime de força estava instalado e talvez não houvesse meios de reverter essa situação de uma hora para outra. Mas teríamos um número menor de vítimas da tortura. A dor do passado seria menor. A vergonha também. Bastaria ter o habeas corpus.
No Brasil de 2015, o habeas corpus não foi legalmente suspenso mas entrou em desuso na Operação Lava Jato, processo onde se resolve — longe da decisão do eleitor — uma fatia importante de nosso futuro. Dezenas de empresários e executivos foram conduzidos à prisão, em novembro de 2014, onde ficam trancafiados enquanto não se dispõem a abrir a boca para colaborar com as investigações. Não têm culpa formada nem respondem a uma acusação precisa. Mas seguem presos. Apenas um pedido de Habeas Corpus, do diretor Renato Duque, foi aceito — por interferência do ministro Teori Zavaski, do STF. Mas já foi revogado. Em entrevista ao Espaço Público, o jornalista e escritor Bernardo Kucinski estimou em 80 o número de Habeas Corpus pedidos e rejeitados.
Para falar desses e outros assuntos que envolvem a Lava Jato, o 247 entrevistou o advogado Wadih Damous. Presidente da OAB-RJ entre 2007 e 2012, Damous é hoje presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB e ocupa o mesmo posto na Comissão da Verdade do Estado. Também é Autor do livro “Medidas provisórias no Brasil — Origem, evolução e novo regime constitucional” ED. LUMEN JURIS, em coautoria com Flavio Dino. Seu depoimento:
PERGUNTA — Embora o governo e o Ministério Público tenham anunciado dois pacotes de corrupção numa única semana, um número razoável de advogados e juristas está preocupado com outra questão: os direitos do cidadão. Uma conquista histórica dos direitos humanos, como o habeas corpus, parece fora de uso depois da Operação Lava Jato. Dezenas de pedidos foram feitos e apenas um foi atendido. Como o senhor avalia isso?
RESPOSTA – Pelo menos para determinados casos judiciais, o habeas corpus parece fora de uso como acontece com a chamada Operação Lava Jato. O medo diante daquilo que os jornais vão dizer acaba por influencia o judiciário. Em processos penais espetaculares, a concessão de um direito legítimo pode ser lida como homenagem à impunidade. Sabemos que a “Opinião pública” e grande imprensa são os efetivos tribunais dos dias de hoje, implacáveis e escandalosos. Assim, o fato de a prisão ser ou não ilegal e abusiva passa a um plano secundário. O que importa é o sucesso no combate à corrupção – de alguns, é bom ressaltar – ainda que à custa da violação dos direitos e garantias fundamentais.
PERGUNTA — Os dois projetos têm uma natureza comum: propõem penas mais duras para crimes de corrupção. Uma das ideias é transformar a corrupção em crime hediondo, comparável a assassinato, sequestro, abuso de crianças. O senhor concorda?
RESPOSTA – Essa atitude do Ministério Público Federal desafia algumas ponderações para além dos aspectos meramente legais. Existe uma urdidura, bem sucedida, de se convencer boa parte da população de que o principal problema do país é a corrupção. Questões relativas à pobreza, à desigualdade, ao déficit educacional, à saúde, à alimentação se tornaram secundárias. O confronto entre governo e oposição não se dá mais no plano das ideias e dos projetos para o país. Resume-se a tentar demonstrar quem é mais ou menos corrupto. O udenismo lacerdista renasce com todas as forças, agora não mais encarnado em um partido político, mas no Ministério Público e em algumas personalidades do Poder Judiciário. Nessa verdadeira cruzada, comandada pela grande imprensa, vale tudo. Inclusive desrespeitar a Constituição. Alguns membros do Ministério Público auto investidos da condição de cruzados moralistas e salvadores do Brasil resolvem elaborar um pacote lamentável, na onda oportunista do espetáculo, que se apresenta como o único e sincero instrumento de combate à praga da corrupção. Querem a admissão de provas ilícitas, o que a Constituição não permite. E querem, sob a luz dos holofotes, transformar a corrupção em crime hediondo. Banalizam o conceito de crime hediondo, no calor da conjuntura de criminalização política. Combater a corrupção é um dever imperioso. Mas o combate tem que ser travado dentro da lei e não como cruzada religiosa.
PERGUNTA — Pessoas que defendem as longas prisões preventivas alegam que presos comuns, sem a notoriedade nem o dinheiro dos acusados da Lava Jato, enfrentam a mesma situação e ninguém se preocupa com eles. Como avaliar este argumento?
RESPOSTA — Trata-se de populismo jurídico reles e tosco. A arbitrariedade do sistema penal sobre as classes populares é fato que deve ser combatido e denunciado, como fazem, há anos, gerações de militantes dos direitos humanos, sob as vistas grossas e até repressivas dos que, agora, defendem esse populismo de meia pataca. Violações e abusos de direito devem ser reprimidos na forma da lei e não ser estendidos a outros segmentos sociais, ainda que abastados. O arbítrio é condenável, atinja ricos ou pobres. Aliás, a arbitrariedade sobre os ricos não deve ser comemorada também por motivos mais práticos. As elites dispõem, ao fim e ao cabo, de meios e modos de se proteger. Os pobres, não. O arbítrio sobre o “andar de cima”, na verdade, facilita e legitima o arbítrio secular sobre o “andar de baixo”.
PERGUNTA — Muitas pessoas se recusam a reconhecer semelhanças entre a prisão preventiva — realizada apenas com a finalidade de se obter uma delação premiada — e a tortura. Alegam que não há o castigo
físico, que causa, reconhecidamente, um imenso sofrimento. Há fundamento nessa visão?
RESPOSTA – Não há possibilidade de êxito no oferecimento de delação premiada sem a coação. Esta é um componente indissociável para que o delator delate. Ele quer se livrar da prisão e seus horrores. Quer se livrar do processo. Não se opera nenhuma conversão moral ou arrependimento. Portanto, é grande a possibilidade de mentir; de mentir parcialmente; de escolher a quem delatar; de falar o que querem ouvir. O componente da coação é sim o traço que aproxima a delação premiada da tortura, ainda que não haja suplício físico.
PERGUNTA - A base intelectual da Lava Jato é a Operação Mãos Limpas, que fez mais de 1000 prisões de empresários e políticos na Itália na década de 1990. O senhor poderia mostrar semelhanças e diferenças entre os dois casos?
R – Tenho um conhecimento superficial da Operação Mãos Limpas. Mas, do pouco que sei, pode-se afirmar que a corrupção na Itália era muito mais profunda e enraizada do que é no Brasil. O Estado italiano tinha as suas instituições e órgãos dominados pelo processo de corrupção, o que não ocorre por aqui com aquela profundidade. Não se podendo esquecer o fator Máfia, ausente no Brasil. Em comum, parece que lá como cá, criou-se um cenário de escandalização . Como em todos os procedimentos de espetacularização, cometeram-se injustiças que levaram ao suicídio algumas pessoas. E – isso aqui está em aberto – na Itália, a anunciada “limpeza” da política gerou uma década e meia de Enrico Berlusconi, cuja figura dispensa comentários. Espero que, no Brasil, o resultado não seja Bolsonaro ou similares. Parece que as condições dos presídios italianos melhoraram com a passagem de poderosos em seus recintos. Se isso acontecer por aqui, será um saldo positivo.
PERGUNTA –O senhor acredita que os acordos de leniência com empresas podem ser convenientes para o país? Não podem ser de estímulo à impunidade, como alega o Ministério Público?
RESPOSTA – Não podemos aceitar que, em nome do combate à corrupção, além das violações de direitos e garantias fundamentais que ele vem produzindo, ainda se pretenda arruinar a economia do país. Que se punam, na forma da lei, os agentes individuais – sócios, executivos, etc – mas não as empresas, nos moldes em que pretende o Ministério Público. No caso da Lava Jato estão envolvidas empresas que desenvolvem a infraestrutura do país. A intransigência do Ministério Público já está causando desemprego. Os acordos de leniência estão previstos em lei e se fazem absolutamente necessários, nesse momento. Não são sinônimos de impunidade.
PERGUNTA — Num artigo publicado no Globo, o senhor criticou a delação premiada, entre outras razões, porque não permite o contraditório, já que “os delatados e a sua defesa não têm acesso ao ato de delação nem chances de confrontar o delator.” Mas esse confronto não pode ocorrer numa segunda fase do processo?
RESPOSTA – O contraditório assegura, às partes do processo (autor e réu), que lhes seja dada ciência de todos os atos processuais nele produzidos para que tenham a possibilidade de contrariá-los. Sem o contraditório, não há ampla defesa. Trata-se de princípio constitucional. A delação premiada é inconstitucional porque viola esse direito ao confronto. No processo, não pode haver procedimentos secretos. Se houver, são nulos por desrespeito à Constituição. E a Constituição não pode ser cumprida pela metade. Ou seja, admitir-se um momento secreto para depois dar conhecimento dele. Em que momento a pessoa delatada tomará conhecimento da delação? A hora em que o juiz quiser? Isso não é possível, juridicamente. Além do mais, a delação premiada, na Operação Lava Jato, só é sigilosa no processo. Fora dele, todos ficam sabendo do teor da delação pelas manchetes de jornais, logo após o depoimento. A obrigação de sigilo, que a própria lei da delação premiada estabelece, tornou-se meramente simbólica. Desrespeita-se a obrigação legal e fica por isso mesmo. Assim, o que o delator disse ganha estatuto de verdade absoluta e é tratado como prova. A prova sem processo.
Blog do Paulo Moreira Leite - Brasil 247
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