21 de março de 2015
Num país que precisa desenvolver-se de qualquer maneira, Ministério Público fala do "latrocínio" da corrupção mas ignora verdadeiro genocídio social e economico produzido pelo ataque a da Petrobras e grandes empresas
O lançamento de dois pacotes contra a corrupção em apenas 72 horas indica que está ocorrendo uma mudança complicada no eixo político brasileiro.
Num país onde a pobreza, a desigualdade, a injustiça e a falta de oportunidades para a maioria sempre constituíram — por justa razão — o foco principal do debate político desde o fim da ditadura militar, o combate à corrupção começa a ser tratado como prioridade número 1.
O lançamento do pacote assinado por Dilma Rousseff, no início da semana, foi uma tentativa de responder a um ambiente hostil, reforçado pelos protestos nos últimos dias. A verdade é que os governos Lula e Dilma têm um conjunto de medidas concretas nessa área, que envolveram uma maior autonomia à Polícia Federal, o reconhecimento das lideranças do Ministério Público, o reforço e a modernização das forças policiais. Ainda assim, prevalece a visão negativa da atuação do governo, repetindo a situação clássica de que os fatos criados socialmente, pelos meios de comunicação, importam menos do que as versões.
Nos dias de hoje, pós-AP 470, em plena Lava Jato, o debate sobre a corrupção deixou o plano da teoria e das boas intenções. Tornou-se uma questão urgente e radical. Nem todos admitem e muitos ainda não perceberam mas já chega a ter prioridade em relação ao desenvolvimento econômico e à criação de empregos. Parece a obrigação número 1 do Estado.
Apenas nesse ambiente é possível aceitar a tese — combatida pelo governo e inaceitável do ponto de vista dos interesses da maioria dos brasileiros — de que é possível e pode até ser necessário quebrar a Petrobras, maior empresa brasileira, para que o Ministério Público possa dar continuidade ao trabalho de identificação e punição de empresários e executivos que podem vir a ser condenados como corruptos. Podem vir a ser, certo?
Em nome desse ponto de vista, também se considera aceitável que o setor privado seja escalpelado, com a transformação de empresas com décadas de atividade na ponta do desenvolvimento em quitandas de frutas e barraquinhas de pipoca. (Nada contra quitandeiros nem pipoqueiros. Cada um tem seu lugar na atividade econômica de um país).
No lançamento do pacote do Ministério Público, o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava Jato, radicalizou de verdade. Argumentou que a corrupção é “semelhante” ao latrocínio, que é o roubo seguido de morte. Dallagnol explicou que na corrupção há desvio de altos valores e “pessoas sofrendo consequências como morte inclusive, por falta de hospitais, segurança, e saneamento básico.”
É. Pode ser. Talvez seja mesmo.
Mas se é para deixar de lado vários conceitos de Direito questionados nessa afirmação, pode-se comparar o latrocínio de que fala o procurador com o genocídio em massa a ser produzido pelo recessão e o desemprego prolongados.
Se é para abandonar todos os pruridos, sejamos economicamente coerentes. Será que 1%, 2% ou sei lá quantos % pagos em propinas — sempre lamentáveis e condenáveis — representam prejuízos maiores ao povo e ao país do que o cancelamento de obras que podem trazer uma revolução na infraestrutura do país e no grau de civilização da população?
Por que não se pergunta quantas famílias podem ser destruídas pela falta de perspectiva, quantos jovens se perderão?
Que tal contabilizar o número de hospitais que sequer chegam a ser planejados quando a atividade econômica é paralisada? O número de estradas, o saneamento?
Alguém se atreve a fazer contas em vez de discursos?
O assalto cotidiano às nossas riquezas é um processo histórico, um produto de séculos. Costuma ser produzido essencialmente pelos entraves ao desenvolvimento, pela concentração de renda, pelo salário baixo, pela preservação do atraso — e isso tem a ver com uma concepção política, uma visão de país, um projeto de futuro.
O ataque ao desenvolvimento nada tem de moral mas envolve uma noção política sobre o papel do Estado. Mário Henrique Simonsen, uma das cabeças econômicas da ditadura militar, estava tão convencido da inutilidade das obras do Estado que recomendava render-se a corrupção. Seu conselho era pagar a propina, muito mais barata, e não fazer a obra — poupando o gasto principal. Era uma piada, mas era coerente: para tantos economistas conservadores, a ação do Estado, em Simonsen, era muito próxima do demônio.
A raiz ideológica dessa visão se encontra nas noções de economistas radicais do mercado, como Frederick Hayeck, para quem até programas de bem-estar da social-democracia não passavam de escalas transitórias para o comunismo de Josef Stalin.
Repare que a discussão começa e termina por três negativas.
A primeira é que os políticos “não têm jeito”. A segunda, que “o Estado não tem jeito.” A terceira é que o grande culpado é o eleitor, que também não tem jeito porque “se deixa enganar facilmente.”
No fundo, a democracia não tem jeito — querem dizer.
Falando nisso: será que o eleitor foi devidamente informado sobre uma mudança tão grandiosa nas prioridades do debate político?
Este é o debate.
Blog do Paulo Moreira Leite - Brasil 247
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