publicado em 25 de abril de 2015 às 18:53
Defender o Pré-Sal e os direitos e a renda dos trabalhadores: as duas grandes batalhas do presente
Ignacio Godinho Delgado, especial para o Viomundo
Num artigo seminal sobre a trajetória do desenvolvimento brasileiro, o saudoso Antônio Barros de Castro assinalava que a disposição de investir do empresariado era impulsionada pelas convenções do crescimento garantido e daestabilidade presumida, asseguradas, respectivamente, pela sustentação de um ritmo forte de expansão decorrente dos investimentos das empresas estatais e pela presença de diversos arranjos que mitigavam os impactos da inflação sobre os ganhos empresariais [1].
Na década de 1980 e 1990 tais convenções deixaram de operar plenamente, por desarranjos na gestão das estatais, derivados de turbulências políticas, seguidos da privatização de boa parte delas, ao que se somava o descontrole do processo inflacionário.
Nesse cenário, na ausência de uma alternativa clara que cativasse o empresariado e diante do temor gerado pelo crescimento da esquerda, em especial do PT e da liderança de Lula, assistiu-se, ao final da década de 1980 e início da seguinte, a um deslocamento do empresariado em direção ao ideário neoliberal, que aporta no Brasil com um conjunto de proposições bastante simples: abertura econômica, estabilidade ancorada na política monetária e cambial, reformas estruturais, atração de capitais externos como substituto do Estado no impulso ao investimento e redução do Custo Brasil, para compensar a elevação da competição externa.
No Custo Brasil, excluída as dimensões relativas à estrutura tributária e à infraestrutura física, pontificava a ideia de que o país dispunha de um custo do trabalho elevado, exigindo flexibilização do mercado de força de trabalho e redução dos encargos com política social. Num país que já completara a transição rural-urbana que acompanha o processo de industrialização (ao contrário, por exemplo, do que ainda ocorre na China), imaginava-se ser possível, com alguma dose de ingenuidade e bastante má fé, a prevalência de competitividade associada ao trabalho barato, que é característica dos momentos em que um grande reservatório de força de trabalho, oriunda do mundo rural, encontra-se à disposição da indústria.
Como se sabe apesar de sua singeleza, tal perspectiva foi um enorme fracasso, resultando em desindustrialização, desnacionalização, vulnerabilidade externa, regressão social e erosão da capacidade governativa do Estado. Assim, abriu-se espaço para o ensaio de uma nova convenção, do desenvolvimento com inclusão, proposta por Lula e o PT. Seus termos aparecem claramente no Plano Plurianual de 2004-2007, que sinalizava para “um processo de crescimento pela expansão do mercado de consumo de massa e com base na incorporação progressiva das famílias trabalhadoras ao mercado consumidor das empresas modernas” (grifo nosso) [2].
Seus instrumentos seriam a elevação consistente do salário mínimo e as políticas de transferência de renda, a ampliação do crédito, a retomada dos investimentos públicos e a readmissão, na agenda governamental, da política industrial, orientada à elevação da capacidade produtiva, à modernização industrial e à inovação, através de isenções fiscais, compras públicas, assistência técnica, linhas de financiamento preferenciais. Não mais a redução do custo do trabalho, mas a política industrial deveria operar como mecanismo de compensação da abertura da economia e da preservação da política macroeconômica centrada na dobradinha câmbio-juros para contenção da inflação (ainda que a ênfase na acumulação de reservas externas indicasse uma importante distinção na política macroeconômica em relação ao passado recente, reduzindo a vulnerabilidade externa da economia brasileira).
Projetava-se assim, a abertura de um ciclo em que a elevação dos salários e da renda conduziria à elevação da capacidade de inovar das empresas brasileiras, que deixariam, assim, de ancorar sua competitividade na degradação do trabalho.
De passagem, registre-se, o papel indutor do Estado e da nossa principal empresa estatal na operação do novo arranjo. Além de programas como o PAC e Minha Casa Minha Vida, as compras públicas têm cumprido também papel importante na dinamização do investimento e estímulo à inovação, a exemplo das ações desenvolvidas pelo Ministério da Saúde, que através de sua política de aquisições e das parcerias público-privadas têm favorecido a afirmação crescente da indústria farmacêutica nacional, com acentuação de seu perfil inovador.
Por seu turno, a política de conteúdo nacional na estratégia de investimentos da Petrobrás e a definição do sistema de partilha na exploração do Pré-Sal, ao lado de impulsionar a indústria naval brasileira, abre uma janela de oportunidade para que se erga no Brasil todo um complexo produtivo nacional na área energética, ancorado na inovação, sinalizando para uma mudança da posição brasileira na economia mundial [3].
É por isto que a apuração de eventos de corrupção na Petrobrás – que precisam ser rigorosamente punidos – desencadeou os ataques contra a empresa por parte da direita e da mídia, com o propósito de minar tanto a política de conteúdo nacional, quanto o regime de partilha, em favor dos interesses de grandes companhias ocidentais, em especial norte-americanas.
Importa assinalar que, entre os países desenvolvidos ou que realizaram ou estão realizando políticas bem-sucedidas de equiparação e ultrapassagem, não há rigorosamente caso algum de construção de uma economia centrada na inovação que tenha ancorado seu desenvolvimento no capital externo, sacrificando empresas nacionais às multinacionais.
A China só elevou seus indicadores de inovação a partir do momento em que adotou, desde 2003, a política deinovação endógena, para afirmação de empresas e marcas chinesas, frustrada a expectativa de alcançar tais resultados com a atração de capital externo e a formação de joint ventures com as multinacionais, pedra de toque das opções da década de 1990 [4].
Por isto, numa economia como a brasileira, já profundamente internacionalizada, exemplos como as políticas de compras e parcerias público-privadas do Ministério da Saúde e a política de petróleo construída no governo Lula precisam ser preservadas e irradiadas para outras áreas, sob pena de frustrarem-se de vez as possibilidades de se construir no Brasil um projeto de desenvolvimento soberano, centrado na inovação.
A política macroeconômica tem se mostrado o calcanhar de Aquiles do arranjo inaugurado em 2003. Embora a indústria conhecesse desempenho significativo até 2010, dada a expansão da demanda e as políticas de apoio, esteve sempre sob ameaça das importações estimuladas pela sobrevalorização cambial.
Em 2011, a situação agravou-se, com o redirecionamento mais intenso das exportações asiáticas para a América Latina, por força da crise europeia, e os elevados estoques criados com a expansão superlativa de 2010, que refrearam a disposição de investir dos empresários. Retorna entre esses, então, o flerte com a abordagem do Custo Brasil, expresso, ainda no primeiro mandato de Dilma, em proposições para revisão da política de valorização do salário mínimo e da extinção da cobrança do adicional de 10% na multa do FGTS pago pelas empresas em caso de demissão sem justa causa, rechaçadas com vigor pelo governo do PT.
Alternativamente, Dilma Rousseff buscou enfrentar, com a mobilização dos bancos públicos e progressiva desvalorização do real, a armadilha dos juros e do câmbio. De certa forma, a reação feroz do capital financeiro contaminou o setor produtivo e, associada a alguns desacertos na condução da política econômica, ao esvaziamento dos frágeis mecanismos de coordenação da política industrial e a grande passividade na política de comunicação do governo, acentuaram a distância desse com o empresariado, contido em sua disposição de investir, apesar de medidas como a desoneração da folha de pagamentos e as linhas de financiamento do BNDES.
O principal desafio do momento é redesenhar o pacto proposto em 2003, num cenário de maiores dificuldades no cenário econômico internacional e fortes restrições fiscais. Calibrar a passagem a um novo padrão de crescimento, que desfaça a armadilha cambial e dos juros, com seus efeitos deletérios sobre a indústria, minimizando os impactos sobre a inflação, é condição decisiva para preservação da base social de sustentação do governo Dilma e para conter a atual disposição do empresariado em seguir o caminho de Damasco, ao inclinar-se para a linha de menor resistência, atribuindo ao custo do trabalho suas dificuldades do presente, como se vê na disputa sobre o PL-4330.
Se esse último caminho prosperar, compromete-se de forma considerável o propósito de se construir um mercado de consumo de massas, ancorado na elevação da participação dos salários e da renda dos setores populares, que provoque os efeitos virtuosos de indução sobre a disposição de inovar do empresariado, conforme nos ensinava Celso Furtado [5].
Há um conjunto grande de temas a debater e ações a desenvolver para construção de um Brasil mais justo, democrático, moderno e soberano. Todavia, NESTE MOMENTO, a defesa de tal perspectiva passa integralmente pela defesa da política de petróleo instaurada por Lula e pela contenção da ofensiva conservadora contra dos direitos do trabalho.
Ignacio Godinho Delgado é professor de História e Ciência Política na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia-Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (INCT-PPED). Doutorou-se em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1999, e foi Visiting Senior Fellow na London School of Economics and Political Science (LSE), entre 2011 e 2012.
[1] CASTRO, A.B. (2012) “Brasil: Desenvolvimento Renegado”. In CASTRO, A. C. & CASTRO, L. B. (org) Do Desenvolvimento Renegado ao Desafio Sinocêntrico – Reflexões de Antônio Barros de Castro sobre o Brasil. RJ/SP: Elsevier /Campus.
[2] BRASIL – MPOG (2003) Plano Plurianual 2004-2007- Mensagem Presidencial. Brasília: MPOG, p. 17.
[3] De forma simplificada, no regime de partilha o país permite a participação de outras empresas na exploração de jazidas, a partir de acertos quanto à divisão dos resultados. No regime de concessão, as empresas pagam um valor fixo e abocanham todo o resultado. Quando não há risco, como é o caso do Pré-Sal, o melhor modelo é o de partilha, por isto é usado preferencialmente pelos países que detêm grandes jazidas. Ver Petrobrás (s.d.) Marco Regulatório.Disponível em http://www.petrobras.com.br/pt/nossas-atividades/areas-de-atuacao/exploracao-e-producao-de-petroleo-e-gas/marco-regulatorio/
[4] DELGADO, I.G (2015) “Política industrial na China, na Índia e no Brasil: legados, dilemas de coordenação e perspectivas”. Texto para Discussão. Nº 2059. Brasília: IPEA.
[5] FURTADO, C. (1979) Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico. 7ª Edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional
Rede Brasil Atual
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