Nem a proximidade, nem as viagens frequentes ou  as similitudes fazem com que a compreensão da Argentina avance no  Brasil. O tema Argentina e, direta ou indiretamente, o das comparações  Argentina-Brasil, foi sempre um tema monopolizado pela direita, de lá e  de cá. Os tucanos, parentes dos radicais argentinos, se associam a eles  no antiperonismo lá e no anti-lulismo aqui. E não entendem nenhum dos  dois.
O clichê se repete sempre: o peronismo, o populismo  argentino, representou a passagem do país vizinho para sua fase  decadente, da qual não saíram mais. Implicitamente ou não, se estende  essa visão para o getulismo. Quanto mais nos distanciemos deles, melhor  estaremos. A direita daqui – particularmente Serra na campanha de 2002 –  acenou sempre com o perigo de nos tornar-nos uma Argentina, com todos  os contornos negativos que a expressão importa.
Cristina Kirchner  acabou de ter um grande triunfo nas prévias eleitorais, permitindo que  todos prognostiquem que se reelegerá em outubro. Nenhum meio de  comunicação brasileiro, depois de terem pintado a Argentina atual e os  governos dos Kirchner com as piores cores, publicou algum artigo para  tentar explicar por que os argentinos vão reeleger Cristina. Seja para  dizer que eles são uns tangueiros masoquistas, degenerados, que gostam  de sofrer ou talvez repensar se suas análises não estão equivocadas –  sobre a Argentina e o Brasil.
Os dois países tiveram trajetórias  similares, a Argentina se industrializando antes, mais voltada para o  mercado interno, com um movimento sindical mais sólido. O golpe  correspondente ao nosso de 1964 – em 1966 – fracassou lá e nossas  histórias tiveram temporalidades mais diferenciadas a partir daquele  momento. Sem que isso alterasse as similaridades. Tanto assim que  vivemos ditaduras similares, crise da dívida similar e governos  neoliberais similares.
As ditaduras dos dois países se orientaram  pela mesma Doutrina de Seguranca Nacional. A crise da dívida atingiu da  mesma forma os dois países. Menem se diferenciava de FHC não pelos  planos de governo, mas porque FHC tomava vinhos franceses, enquanto  Menem comia pizza com champanhe na Casa Rosada.
De forma similar,  os governos de reação ao fracasso do neoliberalismo têm características  similares: prioridade das políticas sociais e de extensão do mercado  interno de consumo, ao invés dos ajustes fiscais; prioridade das  políticas de integração regional ao invés dos Tratados de Livre Comércio  com os EUA; papel ativo do Estado na condução da economia e na garantia  dos direitos sociais ao invés do Estado mínimo e da centralidade do  mercado.
No entanto, a direita daqui usa a Argentina como  espantalho, enquanto a de lá elogia a Lula contra Cristina, numa  prestidigitação típica da direita. Como não é possível estar contra um  governante de tanto sucesso dentro e fora do Brasil, como Lula, tratam  de diferenciá-los, de forma totalmente artificial. FHC, com sua  consciência de classe afinada, escreveu para o Clarin – o jornal dos  otavinhos de lá – que estavam equivocados os que diferenciam os Kirchner  e Lula, que os dois são iguais e igualmente nefastos, melando o jogo da  direita de lá.
Nunca as relações entre os dois países foram tão  boas, para confirmar a similaridade dos dois governos. Ambos pertencem  ao mesmo grupo de governos progressistas na América do Sul, defendem  posições similares no plano internacional, tem políticas parecidas no  plano interno.
A mesma incapacidade da direita brasileira para  entender o governo dos Kirchner é a que tem para entender o governo de  Lula e o de Dilma, o que aumenta ainda mais a similaridade entre eles.
Emir Sader
Carta Maior
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