terça-feira, 2 de setembro de 2014

Portugal e a crise europeia: uma experiência pessoal, por Vico Melo

ter, 02/09/2014 - 12:16

Vico Melo



Portugal, Grécia, Espanha e Irlanda ao longo da crise econômica vêm experimentando a perversidade dos programas de ajustamento estrutural – aplicados durante décadas nos países periféricos, a exemplo da América Latina com o Consenso de Washington – e suas incongruências sociais, levando ao desmonte passo a passo do chamado Estado de bem estar social. Esse desmonte não se restringe somente a esses países relatados, mas também a França, Itália, Inglaterra, Alemanha etc., países atingidos pela crise financeira, mesmo que com intensidades diferentes. Esse relato que escrevo se baseia principalmente por aquilo que vivenciei ao longo desses últimos três (03) anos, vivendo em Portugal devido a um curso de doutorado pleno em Coimbra, com experiências trocadas com amigos/as portugueses, espanhóis, dentre outros lugares na Europa.

A crise de 2007/08 foi provocada principalmente pelos chamados títulos podres – ou subprime, para quem ache mais glamorosa essa palavra, mas não menos imoral – e espalhada pelo mercado financeiro devido a sua completa desregulação. Com o quebra-quebra bancário, governos europeus e estadunidense aprovaram planos bilionários de resgates dessas instituições, devido a proximidade depravada entre o Capital e o Estado, elevando sobremaneira as dívidas públicas em seus países. Construía-se a partir daí as desculpas para as intervenções do mercado nas políticas nacionais (sejam elas sociais ou econômicas) e demonstrando a incapacidade, a ineficiência e o peso do Estado de bem estar social.

É nessa onda – ou tsunami – avassaladora que Portugal se vê prisioneiro dos programas de ajustamento estrutural propostos pelo FMI e o Banco Central Europeu (leia-se Alemanha). Promoveu-se paulatinamente demissões em massa, atingindo atualmente mais de 14% da população economicamente ativa na Europa e, no caso da Espanha e da Grécia, 25%; a fuga de mais de 500 mil portugueses para o exterior, em sua maioria jovens e lembrando que é um país de população de 10 milhões de pessoas; vilas no interior completamente abandonadas, restando somente idosos, pois os jovens saíram em busca de oportunidades; aumento descarado do Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA) de 6% para 17% ou 23%, como nos casos da energia elétrica e gás; criação da Contribuição Extraordinária de Solidariedade que taxa sobre 10% as aposentadorias acima de 5 mil euros; desvalorização do salário mínimo português desde 2011, sem reposição e com cortes dos subsídios de natal e de férias.

Com tudo isso, viu-se o aumento da desigualdade, da pobreza e da violência em Portugal; filhos e famílias voltando a morar com os pais; moradores de ruas. Tive amigos que sentiram na pele os ajustes da Troika, alguns dos quais chegaram a desistir do doutorado devido aos custos e por se verem desempregados. O discurso do governo de direita em Portugal solicita, ano após ano, “mais sacrifícios” à população com a promessa de que em breve a economia voltará a crescer. Mas seguindo nessa perspectiva, não sei até quando a população poderá aguentar esses sacrifícios, em benefício a uma classe financista, e aceitará os desmandos do FMI e do Banco Central Europeu. Toma-se as rédeas da história e reformula-se completamente a estrutura da Zona do Euro ou veremos o aprofundamento da crise financeira, que já não é mais financeira e sim política e social, e um futuro incerto para as gerações futuras, devido ao neoliberalismo nu e cru aplicado em suas sociedades. Ficam aqui algumas das visões e experiências daqueles que sentiram a dura realidade dos anos de neoliberalismo na América Latina.

Vico Melo - Doutorando em Pós-Colonialismos e Cidadania Global pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES-UC) é mestre em Ciência Política pela UFPE e bacharel em Relações Internacionais pela UEPB.

Pela transcrição: J. Carlos de Assis
 
 
Jornal GGN

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