O problema não é o Islã, mas do Islã. O país que cuida do berço da religião, firme aliado das potências ocidentais, exporta a hedionda ideologia por trás do terror
Jean-Yves le Drian (à esquerda), ministro da Defesa da França, durante reunião com o príncipe herdeiro saudita, Salman bin Abdulaziz al-Saud, em 4 de janeiro, três dias antes do atentado. A França é aliada do governo que exporta uma ideologia extremista
Poucas ações são mais repugnantes do que homens armados invadirem a redação de um jornal e assassinarem pessoas cujo ofício era exercer o inalienável direito à liberdade de expressão. A covardia ocorrida na quarta-feira 7 em Paris, na sede do satírico Charlie Hebdo, terá uma repercussão profunda, mas é improvável que o debate público e as ações governamentais resultantes do massacre atinjam o cerne da questão: a origem da ideologia doentia que dá suporte aos terroristas da capital francesa.
Os assassinos de Paris tinham uma clara missão. Desejavam executar os responsáveis pelo veículo que tinha, entre outros alvos também legítimos, o Islã. Certamente, levaram em conta a importância simbólica de um órgão de imprensa para uma sociedade democrática. Ao atacá-lo, desejavam aterrorizar as sociedades vistas por eles como decadentes, por não compartilharem sua sórdida visão de mundo. Buscavam, também, criar um clima de tensão capaz de ampliar a capacidade de recrutamento do jihadismo. O caos e a morte são partes indissociáveis do ambiente no qual se sentem confortáveis.
Irremediavelmente, a culpa pela carnificina é dos homens que planejaram e realizaram a barbárie. Cabe notar, entretanto, que a ideologia por eles defendida viceja em situações específicas. Ao contrário do que afirmam alguns islamofóbicos, rapidamente vindos à superfície diante da tragédia, o problema por trás desse tipo de terror não é o islã. Não há dúvidas, porém, de que se trate de um problema do Islã, ainda que de uma fração minoritária, mas incrivelmente poderosa e influente.
A gênese das ideias dos terroristas de Paris, assim como a de grupos como a Al-Qaeda e o Estado Islâmico, está na Arábia Saudita. Desde 1932, quando foi fundada, até hoje, a Arábia Saudita existe como Estado graças a uma aliança formada por uma família, os Bin Saud, e um establishment religioso inspirado no teólogo Muhammad ibn ‘Abd al-Wahhab.
Al-Wahhab viveu entre 1703 e 1792 e era fortemente influenciado pelo teólogo do século XIII Taqi al-Din ibn Taymiyya, que pregou a retomada do passado glorioso da civilização muçulmana por meio de um retorno às origens do Islã, cuja base seria a interpretação literal do Alcorão e um estilo de vida igual ao de Maomé – preceitos da doutrina hoje conhecida como salafismo. Como discípulo de Ibn Taymiyya, Al-Wahhab desenvolveu o wahabismo, a versão saudita do salafismo.
Nos anos 1940 e 1950, o florescimento da indústria petrolífera, além da parceria com os Estados Unidos e o mundo ocidental, potencializou essa doutrina. Dona de reservas gigantescas de petróleo, a Arábia Saudita passou a exercer um papel de enorme relevância no mundo e decidiu exportar sua ideologia. Esse processo foi facilitado a partir dos anos 1970, quando as receitas do petróleo explodiram. A exportação era (e ainda é) feita por meios como a inclusão de clérigos wahabistas no corpo diplomático saudita e pela fundação de instituições e escolas islâmicas (como as que deram origem ao Taleban no Afeganistão e no Paquistão nos anos 1980).
Ao se alastrar pelo mundo, a ideologia saudita influenciou inúmeras sociedades, mas também foi influenciada. A mais importante das transformações ocorreu no Egito, sob as mãos de Sayyid Qutb. Foi Qutb o responsável por lançar as justificativas teóricas para classificar os líderes políticos muçulmanos que atuam descumprindo a lei islâmica (sharia) como infiéis (kafir) e declará-los excomungados (takfir), passíveis de serem alvo da jihad, e, assim, executados.
Este “avanço” ideológico criou um monumental desafio para os sauditas: hoje, a principal contestação ao regime da família Saud vem de wahabistas que não consideram o governo suficientemente islâmico.
Para contê-los, o governo usa dois expedientes: por um lado, usa seus petrodólares para proporcionar inúmeros benefícios sociais a suas populações. Para quem ainda assim insiste em ser dissidente, jihadista ou não, há um draconiano sistema de controle social e político, que subjuga as mulheres, inclui uma polícia moral e punições como crucificações e decapitações. Responsável por cuidar do lugar onde o Islã nasceu – as cidades de Meca e Medina –, a Arábia Saudita pune os "ataques à religião" com atroz severidade, legitimando ao resto do mundo muçulmano a punição da blasfêmia. A mais recente vítima é o blogueiro liberal Raif Baddawi. Na quinta-feira 8 de janeiro, a Anistia Internacional confirmou que Baddawi foi condenado a mil chibatadas por "insultar o Islã" – 50 por semana, durante 20 semanas.
Se a fúria jihadista é controlada em casa, no exterior ela é libertada. Comumente, a exportação do jihadismo foge ao controle, sendo a Al-Qaeda exemplo clássico e o Estado Islâmico, o mais recente.
Se é claro que a Arábia Saudita está no cerne do que ocorreu em Paris na quarta-feira 7, é óbvio, também, que o país não se encontra sozinho nessa condição. Seus gêmeos ideológicos – Catar, Emirados Árabes Unidos e Kuwait – agem da mesma maneira, mas com menos dinheiro e influência. Além disso, a aliança da família Saud com os EUA e os países europeus, entre eles a França, continua sendo fundamental para ambos os lados. Juntos, Estados Unidos e União Europeia apoiam de maneira firme as ditaduras do Oriente Médio, que retiram de seus cidadãos toda possibilidade de exercer oposição, a não ser a religiosa.
Sem parlamentos, partidos, imprensa, sindicatos e movimentos estudantis independentes, sobram as mesquitas, infestadas de clérigos que pregam a violência. Em um ambiente de quase total ausência de espaço democrático, não há chance de debate livre sobre a religião, e o radicalismo prospera. Diante da generalizada percepção de que os muçulmanos estão sitiados pelo Ocidente desde a colonização europeia, pessoas e instituições ocidentais tornam-se alvo prioritário.
Uma lógica semelhante se reproduz na Europa. As comunidades muçulmanas têm enorme dificuldade em se integrar e geram uma série de indivíduos ressentidos – com a pobreza, a falta de perspectivas e o preconceito. Alienados e marginalizados, os jovens muçulmanos, cujos índices de desemprego são ainda maiores que os dos jovens europeus, por sua vez enormes, ficam à mercê da radicalização propagada por clérigos extremistas.
É nesses caldos culturais e sociais, seja na Europa, seja no Oriente Médio, que o jihadismo floresce.
Na noite da quarta 7, milhares de franceses ocuparam a simbólica Praça da República, em solidariedade às vítimas do ataque terrorista e em defesa das liberdades. Foi um movimento espontâneo e emocionante. Cabe questionar, no entanto, se os franceses (e ingleses, alemães, norte-americanos etc.) vão tratar o atentado como uma ofensiva civilizacional do “Islã” contra o “Ocidente”, fortalecendo extremistas de todos os lados, como desejavam os terroristas, ou vão debater as raízes da arriscada aposta feita por seus governos – conciliar a aliança a uma teocracia sociopata com a obrigação de proteger seus cidadãos, defendendo valores democráticos aqui, mas apoiando seus violadores lá.
Se esse debate ocorrer – após 11 de setembro de 2001, 7 de julho de 2005 em Londres, 11 de março de 2004 em Madri e, agora, 7 de janeiro em Paris –, provavelmente ficará claro que não é possível ter o melhor dos dois mundos, trazendo o petróleo e deixando a pervertida interpretação do Islã promovida pelos sauditas no Oriente Médio.
Poucas ações são mais repugnantes do que homens armados invadirem a redação de um jornal e assassinarem pessoas cujo ofício era exercer o inalienável direito à liberdade de expressão. A covardia ocorrida na quarta-feira 7 em Paris, na sede do satírico Charlie Hebdo, terá uma repercussão profunda, mas é improvável que o debate público e as ações governamentais resultantes do massacre atinjam o cerne da questão: a origem da ideologia doentia que dá suporte aos terroristas da capital francesa.
Os assassinos de Paris tinham uma clara missão. Desejavam executar os responsáveis pelo veículo que tinha, entre outros alvos também legítimos, o Islã. Certamente, levaram em conta a importância simbólica de um órgão de imprensa para uma sociedade democrática. Ao atacá-lo, desejavam aterrorizar as sociedades vistas por eles como decadentes, por não compartilharem sua sórdida visão de mundo. Buscavam, também, criar um clima de tensão capaz de ampliar a capacidade de recrutamento do jihadismo. O caos e a morte são partes indissociáveis do ambiente no qual se sentem confortáveis.
Irremediavelmente, a culpa pela carnificina é dos homens que planejaram e realizaram a barbárie. Cabe notar, entretanto, que a ideologia por eles defendida viceja em situações específicas. Ao contrário do que afirmam alguns islamofóbicos, rapidamente vindos à superfície diante da tragédia, o problema por trás desse tipo de terror não é o islã. Não há dúvidas, porém, de que se trate de um problema do Islã, ainda que de uma fração minoritária, mas incrivelmente poderosa e influente.
A gênese das ideias dos terroristas de Paris, assim como a de grupos como a Al-Qaeda e o Estado Islâmico, está na Arábia Saudita. Desde 1932, quando foi fundada, até hoje, a Arábia Saudita existe como Estado graças a uma aliança formada por uma família, os Bin Saud, e um establishment religioso inspirado no teólogo Muhammad ibn ‘Abd al-Wahhab.
Al-Wahhab viveu entre 1703 e 1792 e era fortemente influenciado pelo teólogo do século XIII Taqi al-Din ibn Taymiyya, que pregou a retomada do passado glorioso da civilização muçulmana por meio de um retorno às origens do Islã, cuja base seria a interpretação literal do Alcorão e um estilo de vida igual ao de Maomé – preceitos da doutrina hoje conhecida como salafismo. Como discípulo de Ibn Taymiyya, Al-Wahhab desenvolveu o wahabismo, a versão saudita do salafismo.
Nos anos 1940 e 1950, o florescimento da indústria petrolífera, além da parceria com os Estados Unidos e o mundo ocidental, potencializou essa doutrina. Dona de reservas gigantescas de petróleo, a Arábia Saudita passou a exercer um papel de enorme relevância no mundo e decidiu exportar sua ideologia. Esse processo foi facilitado a partir dos anos 1970, quando as receitas do petróleo explodiram. A exportação era (e ainda é) feita por meios como a inclusão de clérigos wahabistas no corpo diplomático saudita e pela fundação de instituições e escolas islâmicas (como as que deram origem ao Taleban no Afeganistão e no Paquistão nos anos 1980).
Ao se alastrar pelo mundo, a ideologia saudita influenciou inúmeras sociedades, mas também foi influenciada. A mais importante das transformações ocorreu no Egito, sob as mãos de Sayyid Qutb. Foi Qutb o responsável por lançar as justificativas teóricas para classificar os líderes políticos muçulmanos que atuam descumprindo a lei islâmica (sharia) como infiéis (kafir) e declará-los excomungados (takfir), passíveis de serem alvo da jihad, e, assim, executados.
Este “avanço” ideológico criou um monumental desafio para os sauditas: hoje, a principal contestação ao regime da família Saud vem de wahabistas que não consideram o governo suficientemente islâmico.
Para contê-los, o governo usa dois expedientes: por um lado, usa seus petrodólares para proporcionar inúmeros benefícios sociais a suas populações. Para quem ainda assim insiste em ser dissidente, jihadista ou não, há um draconiano sistema de controle social e político, que subjuga as mulheres, inclui uma polícia moral e punições como crucificações e decapitações. Responsável por cuidar do lugar onde o Islã nasceu – as cidades de Meca e Medina –, a Arábia Saudita pune os "ataques à religião" com atroz severidade, legitimando ao resto do mundo muçulmano a punição da blasfêmia. A mais recente vítima é o blogueiro liberal Raif Baddawi. Na quinta-feira 8 de janeiro, a Anistia Internacional confirmou que Baddawi foi condenado a mil chibatadas por "insultar o Islã" – 50 por semana, durante 20 semanas.
Se a fúria jihadista é controlada em casa, no exterior ela é libertada. Comumente, a exportação do jihadismo foge ao controle, sendo a Al-Qaeda exemplo clássico e o Estado Islâmico, o mais recente.
Se é claro que a Arábia Saudita está no cerne do que ocorreu em Paris na quarta-feira 7, é óbvio, também, que o país não se encontra sozinho nessa condição. Seus gêmeos ideológicos – Catar, Emirados Árabes Unidos e Kuwait – agem da mesma maneira, mas com menos dinheiro e influência. Além disso, a aliança da família Saud com os EUA e os países europeus, entre eles a França, continua sendo fundamental para ambos os lados. Juntos, Estados Unidos e União Europeia apoiam de maneira firme as ditaduras do Oriente Médio, que retiram de seus cidadãos toda possibilidade de exercer oposição, a não ser a religiosa.
Sem parlamentos, partidos, imprensa, sindicatos e movimentos estudantis independentes, sobram as mesquitas, infestadas de clérigos que pregam a violência. Em um ambiente de quase total ausência de espaço democrático, não há chance de debate livre sobre a religião, e o radicalismo prospera. Diante da generalizada percepção de que os muçulmanos estão sitiados pelo Ocidente desde a colonização europeia, pessoas e instituições ocidentais tornam-se alvo prioritário.
Uma lógica semelhante se reproduz na Europa. As comunidades muçulmanas têm enorme dificuldade em se integrar e geram uma série de indivíduos ressentidos – com a pobreza, a falta de perspectivas e o preconceito. Alienados e marginalizados, os jovens muçulmanos, cujos índices de desemprego são ainda maiores que os dos jovens europeus, por sua vez enormes, ficam à mercê da radicalização propagada por clérigos extremistas.
É nesses caldos culturais e sociais, seja na Europa, seja no Oriente Médio, que o jihadismo floresce.
Na noite da quarta 7, milhares de franceses ocuparam a simbólica Praça da República, em solidariedade às vítimas do ataque terrorista e em defesa das liberdades. Foi um movimento espontâneo e emocionante. Cabe questionar, no entanto, se os franceses (e ingleses, alemães, norte-americanos etc.) vão tratar o atentado como uma ofensiva civilizacional do “Islã” contra o “Ocidente”, fortalecendo extremistas de todos os lados, como desejavam os terroristas, ou vão debater as raízes da arriscada aposta feita por seus governos – conciliar a aliança a uma teocracia sociopata com a obrigação de proteger seus cidadãos, defendendo valores democráticos aqui, mas apoiando seus violadores lá.
Se esse debate ocorrer – após 11 de setembro de 2001, 7 de julho de 2005 em Londres, 11 de março de 2004 em Madri e, agora, 7 de janeiro em Paris –, provavelmente ficará claro que não é possível ter o melhor dos dois mundos, trazendo o petróleo e deixando a pervertida interpretação do Islã promovida pelos sauditas no Oriente Médio.
Carta Capital
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