POR FERNANDO BRITO · 26/10/2015
Excepcional o artigo de Humberto Saccomandi no Valor Econômico de sexta-feira, que só hoje me caiu às mãos.
Na nossa réplica tupiniquim da “Operação Mãos Limpas” da Itália, no início dos anos 90, muitos têm ditos que os prejuízos econômicos e políticos que ela trará ao país, em matéria de saneamento das relações entre empresas e governo e moralização da política têm, como advertência, o que se passou naquele país.
Parece bonito, “democrático”, como alguns tolamente viram as tais “jornadas de junho” de 2013, hoje claramente identificável – para além, até, da vontade de alguns de seus participantes – como o ponto de partida da selvageria política e da intolerância que dominam o Brasil, agora.
O descrédito na política é o melhor caminho para o desastre, seja com aventureiros ou tecnocratas.
Humberto Saccomandi, no Valor
Há uma tese corrente no Brasil que diz que, apesar dos escândalos e da corrupção, as instituições brasileiras estão reagindo bem e o país sairá fortalecido desta crise. Infelizmente, essa tese é frágil: a própria proposição sobre o desempenho das instituições é questionável e nada garante o panglossiano final feliz fortalecido. Basta olhar para a Itália: 23 anos depois, o país ainda sofre com as sequelas do seu grande escândalo.
A operação Lava-Jato é frequentemente comparada à operação Mãos Limpas, que abalou a Itália no começou dos anos 90. Há realmente muitos elementos em comum, mas também circunstâncias e características distintas. O que ocorreu por lá não necessariamente acontecerá por aqui, mas o caso mostra como os riscos são grandes.
A operação italiana, que começou em 17 de fevereiro de 1992, apurou o escândalo conhecido como Tangentopoli (algo como Propinópolis ou Subornópolis). Assim como a Lava-Jato, a Mãos Limpas começou investigando uma denúncia localizada de corrupção, mas acabou desvendando um gigantesco e disseminado esquema de financiamento político ilegal.
Itália ainda sofre com sequelas de seu grande escândalo
Os números da Mãos Limpas, operação tocada sobretudo por um pool de procuradores de Milão, impressionam. Mais de 5.000 pessoas foram investigadas, segundo o levantamento do livro “Mani Pulite, la Vera Storia”, de Marco Travaglio e Peter Gomez. Cerca de 3.200 foram denunciadas e 1.254 foram condenadas (mas, atenção, as denúncias contra 424 acusados prescreveram).
Não há um cálculo de quanto dinheiro foi desviado, pois a investigação italiana não estava focada numa empresa, como no caso da Lava-Jato com a Petrobras. A corrupção – basicamente o pagamento de propina para a venda de bens e serviços ao governo – estava disseminada pelos mais variados setores, em todos os níveis da administração pública. Houve até propina para venda de medicamentos hemoderivados. Alguém acredita que no Brasil seja diferente?
O mais impressionante, porém, foi o impacto político-institucional do escândalo. Em menos de dois anos, após uma sangria de eleitores, os cinco partidos (de centro-direita) mais atingidos tinham desaparecido. Foram dissolvidas siglas históricas, como a Democracia Cristã, que conduziu a Itália no imediato pós-guerra, e o Partido Socialista Italiano, que tinha mais de cem anos. Será que o PT vai igualmente acabar?
Uma geração de políticos desapareceu de cena junto com esses partidos. O líder socialista Bettino Craxi, por exemplo, que fora premiê de 1983 a 87, fugiu para a Tunísia, para não ser preso. Acabou morrendo no exílio, no ano 2000.
Essa implosão do sistema político (a esquerda italiana já estava em crise desde a queda do Muro de Berlim) teve desdobramentos perversos. Emergiram duas forças políticas altamente disruptivas: o partido populista Forza Italia, do bilionário Silvio Berlusconi (que entrou na política para salvar a si e a seu império, após a queda de Craxi, o seu protetor político), e a Liga Norte, um grupo conservador, separatista e xenófobo, de caráter territorial, isto é, presente somente no norte da Itália. Com isso, as coalizões de governo no país se tornaram mais difíceis e menos eficazes. E o debate político foi sendo aos poucos tomado pela intolerância.
Esse sistema político disfuncional, que sobreveio ao escândalo, degradou o governo, o Estado e boa parte das instituições italianas pelos 20 anos sucessivos. Executivo e Judiciário passaram anos em guerra aberta. O Parlamento legislava descaradamente em benefício pessoal de Berlusconi. Outros escândalos, menores, se sucederam. A esquerda, quando chegou ao governo, foi vítima de suas próprias divisões internas, mas também de golpes sujos, como quando o grupo de Berlusconi comprou um senador para tirar a maioria parlamentar do governo do premiê Romano Prodi, que foi obrigado assim a renunciar.
Mais recentemente, os últimos três premiês da Itália (Mario Monti, Enrico Letta e Matteo Renzi) não disputaram e não foram eleitos para o cargo. Assumiram em manobras parlamentares, num claro déficit democrático.
O resultado desse imbróglio, em termos econômicos e sociais, foi desastroso para a Itália. A economia italiana foi a que menos cresceu desde então na União Europeu (descontado o colapso recente da Grécia). O investimento estrangeiro minguou. A dívida pública explodiu. Há hoje somente uma universidade italiana entre as 200 melhores do mundo, segundo o ranking QS, o Politécnico de Milão, em 187º lugar (o Brasil tem duas, a pequena Holanda tem 12).
Nesse período, a Itália perdeu credibilidade e virou motivo de piada na Europa. Ficou célebre uma entrevista coletiva em 2011 na qual a premiê alemã, Angela Merkel, e o então presidente francês, Nicolas Sarkozy, não conseguem conter o riso ao falarem de Berlusconi.
Resumindo: o escândalo e seus desdobramentos não foram a única causa, mas foram determinante para fazer a Itália mergulhar numa enorme crise política, institucional e econômica da qual o país só agora, mais de 23 anos depois, começa a vislumbrar uma saída.
Se alguém acha que um populista caricato como Berlusconi não chegaria ao poder no Brasil, pense duas vezes. Não fosse pela Justiça da Suíça, o deputado Eduardo Cunha poderia muito bem ter alcançado a Presidência, num eventual afastamento da presidente Dilma Rousseff.
Assim como a Mãos Limpas não gerou uma política limpa na Itália (havia essa expectativa, mas ocorreu o contrário), a Lava-Jato certamente não vai lavar os nossos defeitos institucionais.
A tese de que o Brasil sairá fortalecido desta crise está, portanto, imbuída de um otimismo moralista e sem justificativa. A Lava-Jato não garante que seremos melhores no futuro. Garante só que éramos piores do que pensávamos no passado. O problema não da investigação, claro. É a expectativa em relação a ela.
Ou seja, cuidado com a crise supostamente purificadora que você deseja para o Brasil. O caso italiano mostra que o resultado pode ser altamente disruptivo, marcar a vida do país por décadas e gerações e ter um custo econômico altíssimo.
Tijolaço
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