Por que Sérgio Moro pediu a prisão da cunhada do petista com base em uma falsa imagem e mantém livre a esposa de Cunha, titular de contas ilegais na Suíça?
Najla Passos
Coordenadora financeira do Centro Sindical das Américas, Marice Corrêa de Lima estava no Panamá, participando de um congresso da entidade, no dia 15 de abril deste ano, quando tomou ciência de que sua prisão temporária havia sido decretada pelo juiz Sérgio Moro, responsável pela Operação Lava Jato. Foi quando ela soube também que seu cunhado, o ex-tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, havia sido preso e sua irmã e esposa dele, Giselda de Lima, cumprira mandado de condução coercitiva.
Dada como foragida, Marice só soube das provas que pesavam contra ela dois dias depois, quando retornou ao país e se apresentou espontaneamente à Polícia Federal: o Ministério Público Federal (MPF) a identificou como a mulher que aparecia em imagens cedidas pelo Banco Itaú efetuando depósitos na conta de sua irmã, Giselda, em duas agências da capital paulista. Foi o suficiente para o juiz Sérgio Moro acatar a tese de que ela estaria ajudando Vaccari a lavar o dinheiro oriundo da corrupção.
No dia 20, o MPF chegou a pedir a conversão da sua prisão temporária em preventiva, para que ela ficasse detida por tempo indeterminado. "Tudo indica que Giselda [mulher de Vaccari] recebe uma espécie de 'mesada' de fonte ilícita paga pela investigada Marice, sendo que os pagamentos continuam sendo feitos até março de 2015. Nesse contexto, a prisão preventiva de Marice é imprescindível para a garantia da ordem pública e econômica, pois está provado que há risco concreto de reiteração delitiva", sustentaram os procuradores.
Marice negava. Mas o juiz Sérgio Moro estendeu a prisão temporária dela, que vencia no dia 20, por mais cinco dias. Ele teve que voltar atrás no dia 23, liberar a investigada e reconhecer o erro primário: uma perícia feita pela PF comprovou que não era Marice que aparecia nas imagens, mas a própria Giselda. A frágil prova jurídica apresentada pelo MPF, acatada pelo juiz e amplamente divulgada pela imprensa caíra por terra. “Elas são muito parecidas”, desculparam-se procuradores e juiz.
Dois pesos e uma medida
Situação bem diversa vive a família do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), também acusado de envolvimento no mesmo esquema da Petrobrás, investigado pela mesma Operação Lava Jato. No dia 20 de agosto, a Procuradoria Geral da República (PGR) encaminhou ao Supremo Tribunal Federal (STF) um pedido de abertura de investigação contra o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), acusado de receber pelo menos US$ 5 milhões em propinas de uma empresa contratada pela estatal.
Na denúncia, a PGR pede que ele seja condenado por dois crimes de corrupção passiva e 60 operações de lavagem de dinheiro. Isso mesmo: 60 operações de lavagem de dinheiro. E não se tratam de depósitos fracionados em agências bancárias do Itaú, aqui mesmo no Brasil, mas de um esquema sofisticado que envolve contas em paraísos fiscais, empresas offshores e até a utilização de doações à igreja Assembleia de Deus de Madureira, no Rio de Janeiro, frequentada por Cunha.
Quatro das contas utilizadas por Cunha e seus familiares estão registradas no banco suíço Julius Baer. Três delas em nome de empresas offshores ligadas diretamente ao presidente da Câmara. Uma quarta aparece com o nome fantasia KOEK, mas um dossiê encaminhado pelo Ministério Público Suíço às autoridades brasileiras comprova que sua titular é a ex-apresentadora da TV Globo, Cláudia Cruz, esposa de Cunha. Uma das filhas do casal é registrada como dependente. Conforme o MP suíço, as quatro contas registraram entrada de cerca de R$ 31,2 milhões e saídas de R$ 15,8 milhões, entre 2007 e 2015, em valores corrigidos.
A conta movimentada por Cláudia vem sendo usada para sustentar, com o dinheiro da corrupção, alguns luxos pouco comuns à imensa maioria dos brasileiros. De janeiro de 2013 a abril de 2015, ela cobriu US$ 525 mil em débitos de um cartão de crédito. Outros US$ 316,5 mil foram destinados ao pagamento de um segundo cartão, em quatro anos. Uma famosa academia de tênis da Flórida, a IMG Academies, recebeu US$ 59,7 mil do montante. A família destinou US$ 8.400 à escola inglesa Malvern College e transferiu US$ 119,7 mil para a Fundacion Esade, da Espanha.
O processo contra Cunha foi parar no STF porque ele tem direito a foro privilegiado, o que não é o caso de Cláudia. As investigações contra ela, se é que já foram transformadas em denúncia, continuam na justiça comum, ou seja, nas mãos de Sérgio Moro, aquele rápido o suficiente para mandar prender a cunhada de Vaccari antes de saber se era ela, de fato, nas imagens que sustentavam a decisão.
O curioso é que mesmo com todas as provas enviadas ao Brasil pelas autoridades da Suíça, não se tem notícia de que ele sequer a tenha convocado para depor. Antes da PGR receber o dossiê do MP suíço sobre o casal, nenhuma acusação contra ela foi vazada para a imprensa. Será que o juiz que decretou a prisão da cunhada de Vaccari no afogadilho, com base em imagens que nem eram delas, não quer se arriscar a incomodar a mulher do poderoso chefe da Câmara?
Debate jurídico
Os erros, atropelos e excessos cometidos no âmbito da Operação Lava Jato têm suscitado um amplo debate jurídico no país. Há quem aplauda e quem condene o estilo do juiz Sérgio Moro de conduzir o processo. O que ninguém discorda é que - para usar um termo que se tornou bastante usual no mundo jurídico desde o chamado mensalão – ele esteja “inovando” em matéria legal. E o caráter seletivo de suas ações é, sem dúvida alguma, parte fundamental desta “inovação”.
Em palestra na capital norte-americana, no último dia 19, o presidente do STF, ministro Ricardo Lewandowski, declarou que a Lava Jato é uma “revolução” no país. “As investigações têm sido muito bem conduzidas. Nós temos algumas sentenças, sentenças muito duras, alguns dos altos executivos do Brasil já foram condenados a passar 15 ou 20 anos na cadeia. É realmente algo novo", disse ele.
Mas há também quem conteste o estilo Moro. No dia 10 de outubro, em seminário promovido pela OAB, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Sebastião Reis, criticou duramente a banalização de uma das principais “inovações” introduzidas pela operação: a utilização da delação premiada como jamais visto antes no país. “A delação está sendo banalizada. Tem mais colaborador do que réus na ‘lava jato’”, afirmou.
Ele também destacou que o instrumento gera seletividade nas condenações. “O Estado está abrindo mão do direito de punir em troca da condenação de três, quatro pessoas”, ressaltou. E condenou o vazamento seletivo das delações para a imprensa que, segundo ele, prejudica a defesa dos citados e pressiona os juízes que atuam no caso a condenarem os acusados.
Uma pesquisa realizada pela revista Consultor Jurídico e divulgada no último dia 15 mostrou que todas as delações firmadas no âmbito da Lava Jato violam a Constituição e as leis penais. A revista analisou 23 acordos homologados por Moro e descobriu que eles preveem, por exemplo, que nem mesmo os advogados de defesa tenham acesso às transcrições dos depoimentos do delator, que ficam restritas ao Ministério Público Federal e ao juiz, o que viola o principio do contraditório e o direito à ampla defesa.
O estudo também mostra que os acordos impedem os delatores contestarem suas sentenças judicialmente, o que viola o direito de ação (artigo 5º, XXXV), que assegura que nenhuma lesão ou ameaça a direito pode ser excluída da apreciação do Judiciário. E ainda que, tal como o Ato Institucional nº 5, editado durante a ditadura militar, os acordos da Lava Jato vedam completamente aos réus a possibilidade de impetração de habeas corpus, entre outras críticas apontadas.
Operadores do direito têm criticado também a mão pesada e seletiva do juiz Sérgio Moro para determinar prisões, ainda que de forma diferente para os diferentes envolvidos, no país que vive o dilema de possuir a quarta maior população carcerária do mundo e desrespeita com frequência as garantias individuais previstas pela própria Constituição. Não por acaso, por conta da sua atuação na Lava Jato, Moro virou o garoto-propaganda de um projeto de lei apresentado pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) ao Senado que prevê a prisão de réus condenados em 2ª instância antes mesmo da conclusão do devido processo legal.
Em audiência pública realizada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) para debater a proposta, ele foi rechaçado por seus pares, que defenderam é possível avançar no combate à corrupção sem reduzir as garantias individuais previstas na Constituição. No debate, o juiz Rubens Casara, especialista em direito processual penal, que citou diretamente a Lava Jato ao operar suas críticas ao projeto defendido por Moro, lembrou que tanto no fascismo clássico italiano, quanto no nazismo alemão e no stalinismo soviético, a presunção de inocência foi relativizada.
O magistrado não tocou no episódio que envolveu Marice e nem em nenhum outro, mas sustentou que a presunção da inocência é importante porque os juízes erram muito e por motivos diversos. Entre eles, citou, inclusive, a pressão da mídia e o medo de serem tarimbados como “petralhas”. “Falta coragem para decidir contra a opinião pública, que muitas vezes não passa da opinião publicada pela imprensa”, ressaltou.
Elmir Duclerc Ramalho Junior, promotor na Bahia e professor de direito processual penal, reforçou que o projeto - inspirado na atuação de Moro na Lava Jato – está impregnado pelo autoritarismo. “Há uma tendência autoritária perigosa que lembra, sim, períodos autoritários da história da humanidade”, afirmou. Ele destacou que a população carcerária brasileira cresceu 16 vezes mais do que a população do país. “Não há malabarismo hermenêutico possível para dizer que não há a incorporação de um pensamento autoritário neste projeto”, disse.
Professor de Criminologia da Faculdade de Direito da USP, Maurício Stegemann Dieter fez uma das críticas mais agressivas ao projeto e ao seu garoto-propaganda. De acordo com ele, o projeto está centrado em uma espécie de “populismo midiático”, que dispensa o conhecimento científico para se calcar no senso comum. Ele lembrou que nunca se prendeu tanta gente na história do país, inclusive gente do andar de cima, como políticos e donos de empreiteiras. Por isso, ele classifica como delírio a premissa que embasa o projeto e o discurso de Moro: a de que o “Brasil é o país da impunidade”.
Um quase epílogo
No dia 20 de setembro passado, João Vaccari Neto foi condenado por Moro a 15 anos e quatro meses de prisão pelos crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e associação criminosa, pelo recebimento de pelo menos R$ 4,26 milhões em propina de contratos da Petrobras. Mas como os processos da Lava Jato correm em segredo de justiça e a imprensa só tem acesso ao que convém para seus condutores, ainda é difícil saber se há, de fato, provas contra Marice e Giselda, como sustentava o MPF em abril deste ano.
Pode ser que sim. A revista Veja, um dos veículos presenteados com vazamentos seletivos do processo, diz que, entre 2008 e 2014, entraram R$ 322,9 mil na conta de Giselda, em vários depósitos parcelados. Segundo O Estado de S. Paulo, outro destinatário dos vazamentos seletivos, Marice teria recebido, em dezembro de 2013, propina da empreiteira OAS, alvo da investigação sobre corrupção e desvios na Petrobrás. Mas ambos os veículos também disseram que Marice era a mulher que aparecia fazendo depósitos nas agências do Itaú. Então, fica difícil ter certeza de qualquer coisa.
Mesmo atolado em denúncias de corrupção, manobras e desmandos de todo tipo, Cunha continua presidindo a Câmara dos Deputados do país. É o segundo na linha de sucessão da presidenta Dilma Rousseff e o homem que irá decidir se o parlamento acolherá ou não seu pedido de impeachment, como pleiteia a oposição. O processo contra ele continua a tramitar no STF, agora sob sigilo. Partidos como o PSOL, Rede, PT e PSB já pediram a cassação do seu mandato, mas ele se recusa, inclusive, a deixar a presidência da Câmara. De Cláudia Cruz, não se tem nenhuma noticia. Continua livre, leve e solta.
Carta Maior
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