Postado em 29 out 2015
por : Nathali Macedo
Este post tem a colaboração de Arthur Colombo Duarte
Todos os argumentos contra o aborto me parecem frágeis porque baseados em crenças individuais, sentimentalismo ou apelo de consciência: nada que apresente a universalidade que a questão exige.
No fundo, nós sabemos o que realmente motiva o aparentemente tão belo discurso pró-vida: a sociedade não admite – jamais admitiu, aliás – que nós, mulheres, tenhamos controle sobre nossas próprias decisões. Esse é um direito que, embora evidente, nós precisamos perseguir, e com afinco.
Em geral, age-se como se a gravidez indesejada fosse uma espécie de castigo porque, afinal, nós transamos. “Foi bom, não foi? Quem mandou abrir as pernas?”
Pois é, foi bom, e a gente não tem mais estômago para entrar nesse mérito. Para explicar que não importa se foi bom, não importa se a culpa foi nossa – já que muita gente esquece que não se engravida sozinha – não importa quais atitudes tenham precedido a gestação que nós não queremos: ela se dá no nosso corpo, na nossa vida, na nossa realidade, e nós, apenas nós, temos o direito de mantê-la ou interrompê-la.
Isso parece ainda mais óbvio se considerarmos que, na medicina, ninguém é obrigado a arriscar a própria vida em prol de outra vida. Ninguém é obrigado, por exemplo, a doar um órgão para outra pessoa. Mesmo que essa outra dependa disso para sobreviver – a decisão é sempre do doador, independente dos motivos que a ensejem. A medicina não poderá obrigá-lo, o Estado não poderá coagí-lo, o discurso pró-vida não virá contrariá-lo e nem mesmo a sociedade será capaz de julgá-lo – porque, afinal, cada um sabe de si.
Isso significa que a própria medicina respeita, em geral, as decisões das pessoas sobre os seus corpos: você pode não aceitar um transplante sanguíneo por questões religiosas. Pode não doar sangue, órgãos, medula. Pode escolher não se submeter a determinados procedimentos médicos. Você pode, inclusive, deixar de salvar a vida de outrem em razão de suas convicções e, pura e simplesmente, de sua vontade.
Acontece que a medicina, as instituições e a sociedade mudam de postura quando se trata do aborto. Quando se trata da autonomia feminina sobre o próprio corpo, aliás. Ora, se a mulher que quer abortar não deseja o feto, por qualquer motivo que seja, esta criança é um paciente que não será capaz de sobreviver ou se desenvolver sem um doador, neste caso, a mãe.
Isto vai, aliás, muito além de uma questão física – como ocorre no caso dos doadores de órgãos. Doa-se o corpo, a liberdade, os projetos, a própria vida. A maternidade exige preparo psicológico e financeiro. Exige, sobretudo, vontade. Vocação, se assim o preferirem. É, portanto, uma decisão personalíssima.
Isso deveria ser simples, exatamente como é simples compreender que ninguém é obrigado a doar um órgão para salvar a vida de outra pessoa, não importa o que pensam os ‘pró-vida’. Mas, em se tratando de mulheres, não é simples assim: as discussões jurídicas são intermináveis, o julgamento social é severo, as condenações são inúmeras.
O aborto masculino está tacitamente permitido. Segundo dados da Revista Exame, o Brasil tem mais de cinco milhões de bebês registrados sem o nome do pai. Abandonados material e afetivamente, sem a menor cerimônia.
A proibição do aborto não encontra razões na medicina, na ciência e nem mesmo na própria lógica. É fruto de uma cultura machista que não só impede que as mulheres tomem decisões sobre seus corpos e suas vidas como é responsável pelo nascimento de milhões de crianças indesejadas, abandonadas pelos pais, negligenciadas por mães inexperientes – e que, não, não têm culpa disso – que crescerão e se tornarão aquilo que a nossa sociedade, tão “do bem” quando defende a “vida” em nossos ventres, considera escória.
Serão estas crianças que se tornarão os adultos marginalizados, linchados e amarrados em postes, para que os cidadãos de bem aplaudam de pé enquanto pensam poder ditar regras sobre o nosso ventre e as nossas decisões.
Sobre o Autor
Colunista, autora do livro "As Mulheres que Possuo", feminista, poetisa, aspirante a advogada e editora do portal Ingênua. Canta blues nas horas vagas.
Diário do Centro do Mundo
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