POR FERNANDO BRITO · 25/05/2016
Tudo isso vai passar. Como tanta coisa já passou, tudo isso vai passar. E, quando passar, quando hoje já for História, seremos, em algum momento, acordados em nossa cadeira de balanço pelos mais jovens com um pedido pra que a gente desvende os segredos deste tempo. Os desvãos deste tempo.
Eles, os mais jovens, vão perguntar de que lado estávamos, como nos comportamos, a quais manifestações comparecemos – às do pato da Fiesp ou às dos vermelhos da Dilma.
Eu já imagino minha conversa com meu neto ou minha neta, ou, quem sabe, se eu tiver ainda mais sorte, com meu bisneto ou minha bisneta.
– Vovô, o que, afinal, aconteceu em 2016? Foi golpe mesmo?
– Foi, meu amor. Foi sim.
– Mas o bisavô do meu amigo diz que não foi golpe, não… Por quê?
– Ele devia ser coxinha…
– Coxinha?! O que era isso, vovô?
– É como a gente chamava o pessoal da classe média e da classe alta que ia pra frente da Fiesp, na Avenida Paulista, adorar um pato de borracha. Mas veja, nada contra o pessoal da classe média ou da classe alta.
– Um pato de borracha? Adorar?
– Sim. Era um pato amarelo feio à beça. Um imenso balão de borracha na forma de pato que virou símbolo dos protestos dos conservadores pra derrubar a presidente Dilma. Aquele pessoal adorava o pato num sentido bíblico, de adorar uma imagem, entende?
– Não…
– Bom…
– Mas, vovô, conta mais. Como foi o golpe? Vocês pegaram em armas? E esses coxinhas? Também?
– Não, meu bem. Isso tinha acontecido no outro golpe, o de 1964, dado pelos militares. Esse, de 2016, foi um golpe civil, parlamentar, apoiado por uma direita enxovalhada e que já andava débil, montado pelos piores políticos que havia no Brasil, e sustentado pela grande mídia. A arma principal deles foi o apoio da grande mídia…
– Grande mídia? O que era isso, vovô?
– Ah, desculpe, amorzinho. Eu esqueci que vocês não veem mais televisão, nem há mais jornais de papel. Esqueci que, hoje, vocês têm milhares de canais na internet.
– Que internet, vovô! Internet é coisa de velho. A gente hoje vê as coisas no…
– Não me fale sobre isso de novo. Não tenho mais idade pra aprender essas coisas.
– O que a grande mídia fez?
– Pois é. Foi assim. Em 2002, na quarta tentativa depois de 21 anos de ditadura militar, a esquerda chegou ao poder no Brasil. Lula, um operário que havia fundado o Partido dos Trabalhadores com alguns intelectuais e artistas, virou presidente da República. Ele foi muito bem no primeiro mandato e se reelegeu. No fim do segundo mandato, como tinha ido bem de novo, ele elegeu a Dilma. O primeiro governo dela fez boas coisas, mas atravessou algumas crises. Principalmente por causa de denúncias de corrupção. Petistas históricos foram presos. Muitos foram condenados. Mas, ainda assim, a Dilma se reelegeu.
– Ah, é por isso que o bisavô do meu amigo chama você de petralha?
– O quê? Diz pra ele que petralha é a…
– O que, vovô?
– Deixa pra lá. Bom, meu benzinho, por causa da crise ética que fez do PT um igual do PMDB…
– O quê?!? Vovô!!! Já tinha PMDB naquele tempo???!!! Caraca!!!
– Pois é, meu bebê, já tinha PMDB, sim. Parece que sempre vai haver.
– Conta mais!
– Bom, por causa da crise ética do PT, agravada por outra crise, essa econômica, e que cresceu muito rápido, o resultado da eleição tinha sido muito apertado. A Dilma ganhou por pouco do Aécio Neves. Aí…
– Quem era esse Aécio Neves?
– Era um coxinha.
– Ah, tá.
– Deixa eu contar. Aí, já no primeiro dia depois da eleição, os conservadores começaram a falar em impeachment. Primeiro, queriam fazer isso baseados nas acusações de corrupção contra gente do PT. Depois, como viram que nenhuma acusação de desvio de dinheiro pesava contra a Dilma, eles procuraram, procuraram, procuraram e acharam uma razão que, pela Constituição, daria margem ao impeachment. Disseram que a Dilma havia cometido “pedaladas fiscais”, ou seja, como se ela tivesse mentido sobre os números oficiais do governo. Ela tinha feito isso pra poder economizar e investir em projetos sociais mais necessários.
– Ah, entendi! Ela fez como o papai faz quando diz que não tem dinheiro pra comprar um brinquedo novo, prometido no início do ano, porque precisa economizar pro supermercado e pra escola da gente.
– Mais ou menos isso.
– E isso era razão pra impeachment, vovô?!
– Foi a maneira que eles encontraram. Mas a grande mídia e eles próprios, os coxinhas, só falavam em corrupção, em corrupção, em corrupção. Uma coisa que nem estava em julgamento no impeachment. No fundo, o que os conservadores queriam era o poder. E, apoiados pela grande mídia, que só falava em Lava-Jato, apesar de a Dilma não ser acusada de nenhum roubo, eles conseguiram o impeachment.
– O que era Lava-Jato?
– Era uma investigação necessária comandada por um juiz chamado Sérgio Moro pra prender os corruptos. Bom, aí assumiu o Michel Temer…
– Quem era esse? Nunca ouvi falar, vovô. Parece marca de perfume.
– Era outro coxinha. Era do PMDB. Ele era o vice da Dilma.
– Peraí, vô! O vice da Dilma era do PMDB?! Como assim?!
– Sim. Ele era o vice da Dilma e assumiu a Presidência, acabando com projetos importantes tocados pelo PT.
– O vice da Dilma era do PMDB?! Como assim?!
– Sim, meu amor, ele era do PMDB. O PT tinha feito um acordo com o PMDB na eleição. E o candidato a vice-presidente havia sido indicado pelos peemedebistas.
– Nossa, vovô! Mas eu achava que o PT não tinha nada a ver com o PMDB…
– Não tinha. Mas, depois, acabou tendo.
– Vovô, mas o PT não passou a ter muito corrupto mesmo?
– Sim, benzinho. O partido guardava uma origem linda, baseada na solidariedade e na honestidade, na humanização das relações, na inclusão dos negros, das mulheres, dos homossexuais, dos desfavorecidos, na construção de um país justo, com escola e saúde públicas boas pra todo mundo. Mas, no poder, muitos deles repetiram seus adversários e fizeram acordos com os mesmos empreiteiros que haviam enriquecido nos governos anteriores. Alguns foram seduzidos pelos milhões da corrupção…
– Vovô, você tá chorando?
– Não, lindeza. É impressão sua.
– Puxa, vovô. Quer dizer que a culpa de o PT ter se dado foi mal foi do próprio PT?!
– De certa forma, sim, neném, porque eles mesmos construíram as armadilhas em que seriam apanhados. No poder, o discurso petista da ética continuou público, mas, no ambiente privado, muitos deles cederam aos encantos da riqueza fácil. Muita gente que era do PT deixou o partido chateada com isso. Alguns desses fundaram o PSOL e foram pra oposição ao PT. Curiosamente, no impeachment, acabou sendo do PSOL o apoio mais bonito à Dilma, no Congresso e nas ruas, na batalha contra o golpe. Foi a exibição mais linda e mais triste de que a beleza do PT havia ficado pra trás, perdida em alguma rua do tempo.
– Vovô, você era do PT naquela época?
– Eu nunca fui filiado a partido nenhum, amor. Sempre votei na esquerda, nunca votei na direita. Nunca. Votei na Dilma, por exemplo, nos dois turnos de 2010 e no segundo turno de 2014. Depois, também fiquei muito chateado com o PT por ele ter se igualado aos partidos adversários na prática do poder.
– Então, por que você defendeu tanto a Dilma e foi contra o golpe?
– Justamente por ser um golpe, meu bem. Por achar injusto, muito injusto e muito feio o que fizeram com a Dilma. Inclusive pelo PT, que dilacerou seu passado e, depois, entregou o seu futuro esquartejado pra ela tentar remontar. Apoiei por acreditar que, se não há roubo, não se pode retirar uma pessoa do poder só porque não gostamos do governo dela. Por achar que o momento certo de fazer isso é na eleição. Mas os coxinhas conseguiram…
– E quem mais era coxinha, vovô?
– Ah, além do bisavô do seu amigo, tinha o Bolsonaro…
– Quem?!?
– É… Desse é feio falar, meu amor. Desse eu conto quando você crescer um pouco mais.
PS. Já não apresento mais Marceu Vieira porque seria pleonasmo falar da delicadeza dos seus textos. Como este, que me fez lembrar meu avô e seu retrato de Getúlio Vargas e o fio da História que nunca nos desatará, trinta anos depois de sua morte. Mas continuo pedindo que visitem o blog do Marceu, nem que seja para manter a chama acesa em quem escreve tão bem.
Tijolaço
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