Mauricio Dias
Maurício Dias é jornalista, editor especial e colunista da edição impressa de CartaCapital. A versão completa de sua coluna é publicada semanalmente na revista. mauriciodias@cartacapital.com.br
A decisão de procuradores da República de acusar o coronel Sebastião Curió de “sequestro qualificado”, crime continuado, em razão do suposto envolvimento dele no desaparecimento de militantes da Guerrilha do Araguaia, em 1974, no Pará, durante a ditadura, sustenta que esse tipo penal não se enquadra na relação de crimes prescritíveis.
A tese deverá ser avaliada pela Justiça, caso seja acolhida. No plano legal, a iniciativa, no entanto, só terá sucesso se o Supremo Tribunal Federal reconsiderar a decisão tomada e invalidar a Lei da Anistia aprovada em 1979 no começo do mandato de João Figueiredo.
Essa lei é o exemplo vivo do processo de conciliação que orienta os rumos da política brasileira. Desde sempre e quase sempre, ela reflete o conchavo no Brasil de cima para desmobilizar a participação do Brasil de baixo.
O acordo conciliatório foi sacramentado entre os militares e a maioria conservadora do Congresso, formada pela base de sustentação da ditadura, cujo líder era José Sarney, e, do outro lado, a oposição moderada incorporada por Tancredo Neves no Partido Popular, que logo nasceria com a reforma partidária e o rompimento da unidade do MDB de Ulysses Guimarães. Não por acaso, Tancredo e Sarney formariam a chapa, presidente e vice, consagrada em eleição indireta de janeiro de 1985.
Como foi articulada, a anistia expressa essa transação política com apoio de parte da sociedade. Mas havia outra parte dela que protestava contra o acordo.
Pesquisa, de âmbito nacional, divulgada recentemente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), dentro de uma análise sobre as relações das Forças Armadas e a Defesa Nacional, oferece fortes indícios de que, muito provavelmente, o Congresso, ao aprovar a lei, traiu parcela majoritária de uma sociedade que se guia, exatamente, pela vontade da maioria.
O resultado reproduz somente as respostas dos entrevistados, 24,3% do total, que disseram conhecer o tema (tabela). Esse -porcentual indica que a história começa a ficar desbotada na memória dos brasileiros.
Nesse universo, uma maioria de 67% acha que deve haver investigação e algum tipo de punição. Desses, 22,2% esperam, além da investigação, a punição para os agentes da repressão, enquanto 20,3% dizem que não deve haver nenhuma punição.
Os números, entretanto, formam uma maioria, 36,6%, que defende algum tipo de punição. E 11,8% deles acham que não deve haver punição para ninguém; e um número muito parecido, 11,4%, propõe punição para os grupos armados de oposição à ditadura.
Do porcentual das respostas surge uma consistente maioria, superior a 77%, que apoia a investigação dos crimes. Um ótimo suporte para a instalação da Comissão da Verdade.
Há um conflito forte entre aqueles que dizem conhecer o tema, em relação à punição para os grupos armados de oposição à ditadura. Juntam no mesmo saco a motivação de agentes dos crimes.
De um lado, agentes da repressão que torturaram, sequestraram e mataram mulheres e homens. Na maioria dos casos, já dominados sem condição de reagir. Do outro lado, o crime de sangue motivado por razões políticas.
A própria declaração Universal dos Direitos Humanos reconhece a legitimidade dessas ações. Há, porém, mais profundidade nas páginas de Shakespeare.
No drama Júlio César, a motivação política salta da boca de Brutus, articulador e participante do assassinato do imperador: “Todos nos levantamos contra o espírito de César, e no espírito dos homens não existe sangue. César deve sangrar por causa disso (…) vamos matá-lo com coragem, mas sem cólera”.
Carta Capital
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