terça-feira, 20 de março de 2012

Comissão da Verdade e responsabilização criminal

Direitos Humanos

Por Sergio Gardenghi Suiama*

Com a promulgação da lei federal que cria a Comissão Nacional da Verdade, ressurge a questão da responsabilização criminal dos agentes de Estado envolvidos em desaparecimentos forçados, execuções sumárias e tortura durante o regime militar brasileiro. A este assunto referiu-se a Alta-Comissária de Direitos Humanos da ONU, Navi Pillay, ao enfatizar, na data de promulgação da lei, a necessidade de adoção de “medidas adicionais para facilitar o julgamento dos supostos responsáveis por violações dos direitos humanos durante a ditadura militar”. “Enquanto isso não ocorrer – acrescentou – ainda há desrespeito à legislação internacional de Direitos Humanos”.

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Do ponto de vista jurídico, a afirmação da principal autoridade da ONU em matéria de direitos humanos (DH) está correta. Há um ano, no dia 24 de novembro de 2010 – a Corte Interamericana de DH declarou, no ponto resolutivo 3 da sentença do caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil que “as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de DH são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de DH… ocorridos no Brasil.”

A Convenção Americana de DH é um dos principais tratados internacionais ratificados pelo Brasil. Entrou em vigor para nós em 1992, ano em que o país espontaneamente ratificou o documento. Seis anos mais tarde, o Congresso Nacional brasileiro aprovou decreto legislativo pelo qual, “é reconhecida como obrigatória, de pleno direito e por prazo indeterminado, a competência da Corte Interamericana de DH em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana de DH”.

Ao aderir à cláusula constante da Convenção Americana de DH que reconhece como obrigatória a competência da Corte Interamericana para todos os casos de violações a DH por ela admitidos, o Brasil, assim como outros 21 países do sistema, voluntariamente cederam parcela de sua jurisdição a um órgão internacional, cujas decisões são dotadas de obrigatoriedade como qualquer sentença judicial.

Ora, assim como ocorreu em todos os outros casos envolvendo graves violações a DH perpetradas por regimes de exceção na América Latina (v.g., casos Almonacid Arellano vs. Chile, Barrios Alto vs. Peru, Mapiripán vs. Colômbia, Goiburu vs. Paraguai, dentre outros), a Corte Interamericana afastou, no caso brasileiro, os argumentos apresentados pelo Estado e declarou (com força vinculante) serem “inadmissíveis as disposições de anistia… prescrição e… excludentes de responsabilidade que pretendam impedir a investigação e punição dos responsáveis por graves violações dos DH, como a tortura, as execuções sumárias… e os desaparecimentos forçados”.

A obrigação do Estado brasileiro de investigar e sancionar os agentes estatais que praticaram os atos acima indicados decorre, portanto, de sentença proferida pelo órgão judicial internacional dotado de competência última para decidir sobre violações a DH cometidas nos Estados sujeitos à sua jurisdição. Nessa perspectiva, não há propriamente conflito entre a sentença internacional e a decisão do Supremo Tribunal Federal brasileiro que considerou a constitucionalidade da Lei de Anistia (Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 153) porque o STF exerceu, na ADPF, sua função de intérprete da Constituição, mas não julgou a compatibilidade da Lei de Anistia com a Convenção Americana de DH, o que foi expressamente feito pela Corte Interamericana, no exercício de sua função de intérprete último daquele tratado.

E que relação há entre a recém-criada Comissão da Verdade e a obrigação internacional imposta ao Brasil de investigar e sancionar os autores de seqüestros, tortura, homicídio e ocultação dos cadáveres de opositores do regime de exceção? A lei sancionada pela Presidente Dilma seguiu o formato adotado pela maioria dos países latino-americanos que lidaram com atos de arbítrio cometidos por regimes anteriores, e conferiu à Comissão atribuições que não se restringem à função de investigar a autoria e materialidade de crimes. No sistema de justiça brasileiro, esta função incumbe primariamente às polícias, e subsidiariamente ao Ministério Público e às CPIs. Ao Ministério Público cabe também promover as respectivas ações penais, sempre que estiverem devidamente identificados os autores de um delito. Os fatos apurados pela Comissão Nacional da Verdade obviamente serão um valioso subsídio para investigações e ações criminais, mas do ponto de vista jurídico não há nenhum vínculo de dependência entre as atividades da persecução penal e os trabalhos desenvolvidos pela Comissão. Em outras palavras, a obrigação de investigar e sancionar os atos equiparados a crimes contra a humanidade praticados durante o regime militar decorre diretamente da sentença do caso Gomes Lund que, como mencionado, invalidou as disposições do direito brasileiro que impedem a investigação e sanção de graves violações de DH ocorridas no período. As finalidades da Comissão não se confundem com os propósitos específicos da persecução penal, voltados à identificação da autoria de crimes.

Vale registrar, por fim, que todos os países sujeitos à jurisdição da Corte Interamericana de DH cumpriram as sentenças que, afastando argumentos de anistia e prescrição, ordenaram a investigação e eventual responsabilização criminal de autores de graves violações a DH.

Sergio Gardenghi Suiama é Procurador da República em São Paulo, mestre em direitos humanos e Human Rights Fellow pela Faculdade de Direito da Universidade de Columbia (EUA). Foi Procurador Regional dos Direitos do Cidadão de São Paulo (2005-2007).

Carta Capital

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