Uma comissão encarregada de elaborar o cronograma de obras do governo procura o ministro–chefe da Casa Civil para acertar a execução dos trabalhos que ficarão sob a responsabilidade dele. Os integrantes, recebidos pelo chefe de gabinete, são acomodados na antessala. O assessor entra, em seguida, na sala do ministro e avisa: “A comissão chegou”. Sem tirar os olhos do documento que lia, o ministro responde: “Deposite na conta de sempre”.
Essa anedota, em circulação há mais de 40 anos nos meios políticos, norteia o espírito das críticas apressadas à Medida Provisória 527, aprovada na Câmara e encaminhada para votação no Senado para a criação do Regime Diferenciado de Contratações (RDC) das obras da Copa do Mundo de 2014 no Brasil.
A MP, curiosamente, chegou ao Senado sob o fogo da própria base governista orquestrado, principalmente, pelo ex-presidente Sarney. Ele acha que a MP deixa dúvidas sobre os orçamentos da Copa. Assim, proclama: “Não vejo nenhum motivo para que se possa retirar a Copa das normas gerais que têm para com todas as despesas da administração pública”.
Reações como essa mostram que o ambiente político, na própria cozinha do governo, está contaminado. Isso porque a proposta tem, em essência, o objetivo de acelerar licitações para superar o atraso das obras e, notadamente, pretende driblar o cartel das empreiteiras para, ao final, alcançar preços mais baixos.
A lei de licitações em vigor é uma peneira e tem propiciado muitas falcatruas. Praticamente, não há obra no País cujo preço não receba reforços de aditivos (de 25% a 50%) que alimentam os interesses político-partidários. E é sabido, também, que as grandes empreiteiras, em geral, controlam as licitações das grandes obras.
O surpreendente clamor por transparência feito por Sarney faz contraponto ao canto de louvor do ministro Jorge Hage, respeitado titular da Controladoria-Geral da União (CGU). Em conversa com este colunista, Hage reiterou que a proposta, ao contrário do que se diz, não esconderá o valor máximo que o governo pretende pagar pela obra e que, apenas, “não revelará o valor antecipadamente”.
Ele até vê falhas na lei, mas considera que, entre outras melhorias, propõe a criação de um “regime de contratação integrada que transfere a responsabilidade para a empresa licitante e suprime os tradicionais aditivos”.
“Achamos que seria preciso especificar melhor o conteúdo mínimo obrigatório no anteprojeto de engenharia, que é o novo conceito do instrumento que constará do edital em lugar do projeto básico. Mas isso poderá ser resolvido no decreto regulamentador”, explica.
A CGU esforça-se em criar um cinturão de s
egurança para o dinheiro público. Para isso, o ministro acredita que “seria interessante que, nos casos de não divulgação prévia do orçamento aos licitantes, fosse obrigatória a divulgação dos quantitativos físicos e das composições analíticas dos serviços”. Para o controlador–geral da União, isso daria aos concorrentes “plenas condições para melhor entender o que o governo pretende”. Além do mais, “ofereceria melhores condições” para a avaliação das propostas, “pois elas estariam baseadas em um mesmo referencial”.
Que não se tenham ilusões, no entanto. A lei não alcançará o padrão ético que seria desejável, até porque contra a má-fé humana não existe blindagem perfeita, principalmente em um país como o Brasil, onde se costuma transformar o patrimônio público em bem privado.
Andante Mosso
Notas sobre os principais fatos da semana
Leis da Fifa
Qualquer que seja o regime que regule as obras para a Copa de 2014 no Brasil, elas ficarão abertas a alterações impostas pela Fifa.
Países-sede da competição submetem-se a essa obediência (não foi assim na Alemanha em 2006, ali nem todas as imposições da Fifa foram aceitas, mas a Alemanha é Alemanha). De todo modo, é inevitável que surjam problemas, a partir do choque entre normas nacionais e internacionais. É o que ocorre na reforma do Maracanã.
O prazo de entrega do projeto ao Tribunal de Contas da União foi prorrogado várias vezes pelo Rio de Janeiro. Finalmente definido, foi encaminhado ao TCU com a advertência: ressalvadas mudanças por exigência da Fifa.
Desenlace
Um dos mais importantes escritórios de advocacia carioca recebeu a incumbência de preparar os papéis de “separação amigável” entre o governador Sérgio Cabral e a primeira-dama do estado do Rio, Adriana Ancelmo.
Dois pesos, duas medidas
Sob pressão da opinião pública, em 2011, o Senado deu o primeiro passo para anistiar os bombeiros amotinados no Rio de Janeiro, contra o salário de fome.
Em 2007, sob pressão dos chefes militares, Lula recuou da anistia prometida aos controladores de voo que, por segurança, exigiam melhores condições de trabalho.
Geleia geral
A proposta do senador Renan Calheiros (PMDB-AL) para realizar todas as eleições no mesmo ano, de presidente a vereador, pode gerar maus resultados:
– Filas enormes nas seções eleitorais, com prejuízo para os eleitores e possível reflexo no porcentual de abstenção, caso não seja multiplicado o número de cabines.
– A verticalização informal das eleições repetindo, com viés democrático, o ranço autoritário da verticalização formal criada no regime militar.
– Prevista para vigorar a partir de 2018, pretende reduzir à metade os vencedores das eleições municipais de 2016.
Quem se habilitará a disputar um mandato tão caro e de mangas curtas?
A ideia tem um golpe embutido: tentar reduzir o número de partidos.
Memória queimada
Parece, enfim, que a presidenta Dilma Rousseff desistiu de assinar o óbito da memória nacional ao recusar manter documentos oficiais sob sigilo eterno.
No debate, porém, surgiu a informação de que foram queimados documentos sobre a guerrilha no Araguaia, desencadeada pelo PCdoB no fim dos anos 1960.
Sem termo de incineração, essa fogueira equivale a crimes de destruição de provas e prevaricação, ambos já prescritos. Mas o fato deveria constar da pauta da Comissão da Verdade, pois seria bom conhecer os criminosos.
Os “bombeiros” de sempre vão achar melhor deixar tudo como d’antes no quartel d’Abrantes?
Prova real
Pesquisa inédita do Ibope, realizada após o primeiro turno das eleições de 2010, dá um golpe no preconceito contra o eleitor mais pobre e menos escolarizado.
Os números incluídos no estudo “Urna eletrônica: mudanças no processo eleitoral e no comportamento dos eleitores”, feito por Helio Gastaldi e Rosi Rosendo, do Ibope Inteligência, mostram que não há grande variação na dificuldade em registrar o voto entre a base (menores renda e escolaridade e que residem em locais com menor infraestrutura) e o topo da pirâmide social (tabela).
No grupo dos 85% que não tiveram dificuldade para votar, a diferença entre os 74% de menor escolaridade e os 88% de maior escolaridade não forma um abismo. (Confira gráfico)
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