Afastado da Secretaria dos Esportes, por suspeita de participação em esquemas de consultas falsas em hospitais, o médico Jose Roberto Pagura já foi um herói da velha mídia. O modelo de construção de reputação da revista Veja o transformou, durante alguns meses, no mais festejado neurocirurgião do país – embora, junto aos seus pares, sua reputação fosse pequena.
Como o show não pode parar, transformaram o atendimento a Osmar Santos – vítima de acidente automobilístico – em uma ressurreição patrocinada pelo santo Pagura, enquanto se tentava destruir a reputação da Santa Casa de Lins, responsável pelo primeiro atendimento. A matéria acenava inclusive com o desdobramento do “milagre”, de Osmar voltar às suas atividades.
Depois, no caso Cláudia Liz, novo embuste, com Pagura sendo apresentado como salvador da modelo, enquanto se sacrificava a imagem da Clínica Santé e do anestesista de sua cirurgia.
Os dois casos mereceram capa da revista Veja.
A montagem desse modelo foi fácil.
Primeiro, Pagura conseguiu montar seu atendimento no Hospital Albert Einstein, embora não fizesse parte de seus quadros médicos. Depois, uma assessoria de imprensa. Finalmente, jornalistas cultivadores do show da notícia. Tornou-se uma celebridade.
Duas colunas minhas ajudaram a desmontar a farsa. Na época recebi inúmeros emails de médicos, espantados com o fato de nenhum repórter que cobria os temas ter ao menos se dado o trabalho de procurar um especialista para desmontar a fraude.
Em seguida o Einstein me convidou para uma conversa, onde admitiram as falhas, inclusive a de permitir que a assessoria de imprensa de Pagura se fizesse passar como sendo do próprio Einstein. O hospital corrigiu os procedimentos e não mais se repetiu esse episódio de marketinização da saúde.
Esses dois casos – Osmar e Cláudia – constam de meu livro “O jornalismo dos anos 90”.
Coluna de 19/09/1997
Cláudia Liz e a ética médica
LUÍS NASSIF
DO CONSELHO EDITORIAL
Quando a modelo Cláudia Liz acordou intacta, depois de alguns dias de coma, a mídia tinha presenteado o show bizz com mais um conto de fadas completo com final feliz.
No elenco, como vilão, o anestesista Francisco Minan Neto, humilde, formado na distante Universidade da Paraíba; como castelo da bruxa, a Clínica Santé; e, como príncipe encantando, o neurocirurgião José Roberto Pagura, falante, formação internacional.
Foram dias de um show inesquecível. A bela chega quase morta ao hospital. Lá, o neurocirurgião Pagura diagnostica coma profundo e despeja prognósticos assustadores: não poderia assegurar sequer que saísse com vida.
Se sobrevivesse, haveria sequelas, de cegueira até uma vida vegetativa. Alguns dias depois, dá-se o milagre.
Contrariando todos os prognósticos (do dr. Pagura), a bela acorda provisoriamente um pouco menos bela, posto que levemente inchada por medicamentos, mas feliz e de volta ao convívio da família, do marido apaixonado e de sua legião de fãs.
Tema médico
Baixada a espuma, a maior parte dos especialistas concorda:
1) O comportamento do anestesista foi irrepreensível. Acudiu a paciente em tempo, tomou todas as providências necessárias. Depois, saiu de cena, tão discretamente quanto permaneceu, apesar de ter sido massacrado impiedosamente pela mídia.
2) A clínica é bem equipada, forneceu toda a infra-estrutura que permitiu a recuperação da modelo e comportou-se de maneira ética -não dando curso a suposições sobre as causas do choque, que, para livrar sua imagem, pudessem de alguma maneira comprometer os princípios de sigilo médico.
3) Pagura não resistiu aos holofotes e permitiu que se passasse à opinião pública um quadro falsamente dramático sobre a situação da modelo, criando clima propício ao linchamento de seus colegas da Santé.
4) O comportamento da maior parte da mídia foi superficial e sensacionalista, aceitando acriticamente as avaliações de Pagura.
Opinião de especialistas
Se, na ocasião, tivessem sido consultados outros especialistas do setor, saber-se-ia que na isquemia cerebral o que define o prognóstico é o que é feito nos primeiros minutos. Passado esse período inicial, não há nada mais a fazer.
Se não houve sequelas, é porque o atendimento inicial foi perfeito.
Além disso -dizem eles-, não havia nenhuma evidência de que Liz estava em coma profundo ao chegar ao Einstein. Tanto que reagiu ao beliscão que lhe foi aplicado no braço por Pagura.
Os exames de tomografia e ressonância magnética realizados não apontaram nenhuma lesão no cérebro. O único exame que apresentou dúvidas foi um eletroencefalograma. Mas seu valor era questionável devido ao fato da moça estar pesadamente sedada.
Um especialista consultado pela coluna foi taxativo: "Nunca vi na vida alguém estar num coma preocupante e levantar três dias depois. Na saída do coma, há uma sequência de etapas que a pessoa atravessa. Se estivesse entrado em coma profundo, não podia ter despertado de uma hora para outra. A notícia foi motivo de riso em todos os meios neurológicos".
Ética médica
O episódio certamente se constituirá em divisor de águas na definição da ética médica. E seria profundamente saudável se permitisse à imprensa reavaliar suas relações com as fontes e a maneira de abordar temas técnicos.
Nos últimos anos, está acontecendo com a medicina -e com a odontologia- processo semelhante ao que ocorreu com advogados e economistas: por meio de esquemas de assessoria de imprensa, médicos valem-se do pouco conhecimento técnico da mídia para se "venderem" ao público leigo.
Cria-se mistura explosiva de interesses da mídia por sensacionalismo, e desses profissionais por notoriedade.
"Tenho 54 médicos", diz um diretor de hospital conceituado de São Paulo.
"Tive residentes que, antes de ter consultório, tinham assessoria de imprensa."
Desvirtua-se o conceito de reputação médica, e ludibria-se a boa fé dos consumidores. Antes as reputações médicas eram forjadas junto aos demais médicos.
Para angariar respeito da comunidade médica, médico não deveria se expor à mídia, em shows inconsequentes.
Assim, as reputações eram construídas lentamente, porém com segurança.
Poucos conhecem o professor Sérgio Oliveira. Há mais de 15 anos é o mais renomado especialista em operações de ponte de safena.
O renome foi testado junto aos próprios colegas, porque provavelmente jamais deu uma entrevista na vida.
Hoje um repórter, sem conhecimento técnico, que avalia informações médicas apenas dentro do conceito jornalístico -o que é ou não é notícia- pode ser manipulado, e se transformar em instrumento de consagração ou de liquidação de reputações.
Corporativismo médico
Segundo notícias da Folha, responsável pela investigação do caso pelo Conselho Regional de Medicina (CRM), o neurologista Célio Levyman, considerou normal o comportamento de Pagura.
"O melhor é ser uma espécie de 'pessimista dialético': se o paciente piora, você já tem uma estrutura clínica e o espírito preparado. Se melhora, o estado do paciente, você fica duas vezes mais feliz."
Sugere-se que o CRM submeta seu analista de ética a um conselho de ética, para ver se salva sua própria reputação das acusações de corporativismo inconsequente.
Coluna de 2 de fevereiro de 1997
Osmar Santos e o marketing da saúde
LUÍS NASSIF
No dia 22 de dezembro de 1995, o radialista Osmar Santos arrebentou o crânio em um acidente automobilístico na rodovia Transbrasiliana.
Chegou à Santa Casa de Lins em coma, em estado de choque e com a pressão a zero, com ferimento aberto no crânio, dilaceramento cerebral e ruptura das artérias cerebrais.
Imediatamente foi levado para o Centro Cirúrgico. Sua vida ficou nas mãos dos neurocirurgiões Ivan Tadeu, Maorílio Aparecido Calil e Lauro Bairral Dias. Apesar de depauperada pela crise do Sistema Único de Saúde (SUS), a Santa Casa de Lins é instituição decente, hospital de referência para dez cidades da região, com boa UTI e um bom centro cirúrgico.
A cirurgia durou quatro horas. Primeiro, foi feito a limpeza cirúrgica, que retirou o material necrosado e aspirado o sangue do cérebro. Depois, o hemostasia, para parar o sangramento.
Não havia condições de se fazer a anastomose arterial (procedimento visando restabelecer a circulação na parte do cérebro afetada) devido ao tempo que decorreu entre o acidente e o sangramento e ao fato de a artéria ter sido seccionada de modo irreparável.
Terminada a primeira fase, Osmar Santos foi submetido a uma tomografia, que revelou pequenas lesões ainda a serem extirpadas. Mas os três neurocirurgiões optaram por não mexer porque, em seguida, foram informados da vinda de um jatinho UTI, incumbido de remover o radialista para São Paulo.
Osmar Santos chegou ao Alberto Einstein sedado, da mesma maneira que a modelo Cláudia Liz. E, como Liz, foi atendido pelo neurocirurgião José Roberto Pagura. Os procedimentos foram idênticos em ambos os casos.
Primeiro, a dramatização da situação dos pacientes. À imprensa, Pagura informou que entre um estágio de coma de 3 (o mais grave) a 15, Osmar Santos estava em 5. As avaliações eram acompanhadas de críticas pesadas aos procedimentos adotados anteriormente. A partir desses dados, perseguir a mera sobrevivência do radialista era um desafio ciclópico. Por isso, um mês depois, quando o radialista saiu vivo do hospital, o fato foi tratado como feito médico. Um ano e meio depois, quando conseguiu andar e balbuciar algumas palavras, muitas publicações saudaram como "milagre médico".
Em Lins, os três neurocirurgiões não entendiam nada. Haviam salvo a vida do radialista, operado em circunstâncias dificílimas. Receberam Santos com pressão a zero e o entregaram ao Einstein vivo e agitado -a ponto de precisar ser sedado.
Os testes para a medição do coma são de ordem motora e verbal. Medem reações do paciente a estímulos externos. Se o paciente está sedado, é evidente que os reflexos são menores. Por isso mesmo, quando se divulga o coma de pacientes sedados, informa-se essa circunstância para que se dêem os devidos descontos. Mas não se informou. Também não havia "milagre" na recuperação do radialista. Dadas as circunstâncias do acidente, ele estava alcançando a recuperação possível, como andar trôpegamente e balbuciar algumas palavras. E não sairá muito mais disso.
A avaliação dos médicos de Lins é a mesma de neurocirurgiões da capital consultados pela coluna.
Mas como tirar da mídia essa oportunidade esplendorosa de poder relatar a seus leitores um milagre médico?
"Nunca nos deram chance de rebater", queixa-se o neurocirurgião Ivan Tadeu, o primeiro a atender Osmar Santos. "Pagura disse que tinha tirado cabelo de dentro do crânio, sujeira. Não era nada disso. Comentou também que a gente deveria ter feito anastomose das artérias. Escrevi carta para Veja discordando, mas nada foi publicado".
Medicina e mídia Qual o resultado final dessa mistura incestuosa entre vaidades médicas e sensacionalismo da mídia? Primeiro, a falsa impressão de que apenas os grandes centros médicos estão aparelhados a salvar vidas humanas.
Santos foi salvo em uma Santa Casa de Misericórdia, conveniada do SUS. Mas, antes e depois do acidente, a mídia persistiu em mitificar os grandes hospitais sofisticados e em desancar o SUS.
Depois, o engodo do "milagre" médico, uma banalização perigosa da ciência médica, que permite a hospitais fixarem preços absurdos, a seus médicos cobrarem honorários estratosféricos e aos pacientes pagarem conformados porque milagre não tem preço.
Finalmente, a competição desleal entre médicos. O maior ou menor sucesso passa a depender não apenas da competência técnica, mas do menor ou maior escrúpulo do médico em fazer a sua própria mídia, e em crucificar colegas.
Blog do Luis Nassif
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