domingo, 16 de setembro de 2012

O Paraíso, o Inferno e o ‘mensalão’


 Por Marcos Coimbra

Na mitologia de muitas culturas, existem narrativas sobre os caminhos que se abrem em razão das escolhas que fazemos. Em algumas versões, são lendas que nos levam a pensar nas consequências práticas das ações presentes, no modo como determinam nosso futuro no mundo. Em outras, referem-se ao que nos aguarda no além-túmulo.

Na tradição do catolicismo popular temos, por exemplo, a crença do encontro da alma com São Pedro, que, zelador da porta do Céu, só deixa entrar no Paraíso quem tiver mantido vida justa na Terra. Quem não, endereça ao Inferno.
Para muitos muçulmanos, o primeiro destino da alma é determinado nos instantes que sucedem a morte. Chegam os anjos Munkar e Nakir e a interrogam. São três perguntas: “Quem é teu senhor? Quem é teu profeta? Qual é a tua religião?” Os que acertam ficam à espera da ressurreição em alegria, os que erram são torturados até o Dia do Julgamento.
São muitas histórias semelhantes e, em todas, um mesmo recado: quem faz a coisa certa é recompensado, quem se desvia paga. Nas labaredas do Inferno.
A ansiedade dos ministros do Supremo Tribunal Federal perante o julgamento do mensalão é compreensível.
Receberam da Procuradoria-Geral da República uma denúncia que os especialistas consideram mais frágil do que aquela feita contra Fernando Collor. E aquela foi tão inepta que caiu por terra na primeira análise.
O fulcro da acusação é uma palavra inventada por um personagem famoso pela falta de seriedade. Nada, nem uma única evidência foi produzida em sete anos de investigações que demonstrasse que funcionou no Congresso Nacional, entre 2004 e 2005, um esquema de compra de votos para aprovar medidas de interesse do governo Lula. O que torna a existência da “quadrilha do mensalão” uma fantasia.
Quem duvidar, que leia a denúncia e verifique com seus olhos se ela aponta as votações e os votos que teriam sido negociados (o número do inquérito é 2.245 e está disponível no site da PGR). Mas nem a fragilidade da denúncia nem sua falta de sentido estiveram em discussão em algum momento.
Quando chegou ao Supremo, o julgamento estava concluído. O veredicto havia sido dado e transitado em julgado.
Exercendo o papel autoassumido de vanguarda da oposição ao “lulopetismo”, os proprietários e funcionários da grande indústria de comunicação tinham o script pronto. E ai de quem o contrariasse. O que não quer dizer que o argumento mais forte que usassem fosse o porrete. Uma dosagem equilibrada de ameaça e adulação é sempre mais eficaz.
Se os ministros fizessem o que ela queria, as portas do Paraíso se abririam para eles. Se teimassem em discutir coisas menores – como provas, depoimentos e outros detalhes –, a fogueira começaria a arder.
Há alguns meses, o ministro Luiz Fux publicou um livro. Como toda obra técnica, de interesse restrito. Seu título bastaria para afugentar os leigos: Jurisdição Constitucional.
O lançamento no Rio de Janeiro, cidade natal do autor, mereceu tratamento vip da TV Globo. Com direito a matéria de 1 minuto e 30 segundos nos telejornais da emissora, tempo reservado a assuntos relevantes.
Talvez alguém se perguntasse o porquê do salamaleque. Mas é fácil entendê-lo. Quem não gosta de ser bem tratado? Quem não aprecia saber que sua família e seus amigos acabam de vê-lo na televisão? Quem não fica feliz quando recebe um cafuné?
O Paraíso é assim, cheio de carinhos. E quem pode proporcioná-lo pode o oposto. Como dizia Augusto dos Anjos: “A mão que afaga é a mesma que apedreja”.
Se fôssemos como os Estados Unidos, onde os juízes da Suprema Corte são figuras inacessíveis, quase desconhecidas do grande público, seria uma coisa. Mas não somos. Aqui nossos ministros adoram o reconhecimento e não hesitam em se revelar. Amam os holofotes.
Uns fazem saber que andam de motocicleta, outros que são exímios músicos, alguns se apresentam como poliglotas. Identificamos seus times de futebol, os restaurantes que frequentam. Às vezes, até seus negócios e os ambientes inadequados que frequentam.
Do julgamento do mensalão, poderiam sair endeusados, merecendo estátuas e concedendo autógrafos. Bastava que cumprissem o papel que lhes estava reservado. Ou achincalhados. Tornados vilões. Cabia a eles escolher o caminho, o fácil ou o difícil.
No fundo, estão fazendo o que a maioria faria na mesma situação. Talvez não o que se esperaria deles. Mas quem mandou esperar, conhecendo-os?

Carta Capital

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