Leandro Fortes
Em
1º de março de 2010, uma reunião de milionários em luxuoso hotel de São
Paulo foi festejada pela mídia nacional como o início de uma nova etapa
na luta da civilização ocidental contra o ateísmo comunista e a
subversão dos valores cristãos. Autodenominado 1º Fórum Democracia e
Liberdade de Expressão, o evento teve como anfitriões três dos maiores
grupos de mídia nacional: Roberto Civita, dono da Editora Abril, Otávio
Frias Filho, da Folha de S.Paulo, e Roberto Irineu Marinho, da Globo.
O evento, que cobrou dos participantes uma taxa de
500 reais, foi uma das primeiras manifestações do Instituto Millenium,
organização muito semelhante ao Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais
(Ipes), um dos fomentadores do golpe de 1964 (quadro à pág. 28).
Como o Ipes de quase 50 anos atrás, o Millenium funda seus princípios
na liberdade dos mercados e no medo do “avanço do comunismo”, hoje
personificado nos movimentos bolivarianos de Hugo Chávez, Rafael Correa e
Evo Morales. Muitos de seus integrantes atuais engrossaram as marchas
da família nos anos 60 e sustentaram a ditadura. Outros tantos, mais
jovens, construíram carreiras, principalmente na mídia, e ganharam
dinheiro com um discurso tosco de criminalização da esquerda, dos
movimentos sociais, de minorias e contra qualquer política social, do
Bolsa Família às cotas nas universidades.
Há muitos comediantes no grupo. No seminário de
2010, o “democrata” Arnaldo Jabor arrancou aplausos da plateia ao
bradar: “A questão é como impedir politicamente o pensamento de uma
velha esquerda que não deveria mais existir no mundo?” Isso, como? A
resposta é tão clara como a pergunta: com um golpe. No mesmo evento
brilhou Marcelo Madureira, do Casseta & Planeta. Como se verá ao
longo deste texto, há um traço comum entre vários “especialistas” do
Millenium: muitos se declaram ex-comunistas, ex-esquerdistas, em uma
tentativa de provar que suas afirmações são fruto de uma experiência
real e não da mais tacanha origem conservadora. Madureira não foge à
regra: “Sou forjado no pior partido político que o Brasil já teve”,
anunciou o “arrependido”, em referência ao Partido Comunista Brasileiro (PCB),
o velho Partidão. Após a autoimolação, o piadista atacou, ao se referir
ao governo do PT de então: “Eu conheço todos esses caras que estão no
poder, eram os caras que não estudavam”. Eis o nível.
O símbolo do Millenium é um círculo de sigmas, a letra grega da
bandeira integralista, aquela turma no Brasil que apoiou os nazistas.
Jabor e Madureira estão perfilados em uma extensa lista de colaboradores
no site da entidade, quase todos assíduos frequentadores das páginas de
opinião dos principais jornais e de programas na tevê e no rádio.
Montado sob a tutela do suprassumo do pensamento conservador nacional e
financiado por grandes empresas, o instituto vende a imagem de um
refinado clube do pensamento liberal, uma cidadela contra a barbárie.
Mas a crítica primária e o discurso em uníssono de seus integrantes têm
pouco a oferecer além de uma narrativa obscura da política, da economia e
da cultura nacional. Replica, às vezes com contornos acadêmicos, as
mesmas ideias que emanam do carcomido auditório do Clube Militar, espaço
de recreação dos oficiais de pijama.
Meio empresa, meio quartel, o Millenium funciona sob uma
impressionante estrutura hierárquica comandada e financiada por
medalhões da indústria. Baseia-se na disseminação massiva de uma ideia
central, o liberalismo econômico ortodoxo, e os conceitos de
livre-mercado e propriedade privada. Tudo bem se fosse só isso. No
fundo, o discurso liberal esconde um frequente flerte com o moralismo
udenista, o discurso golpista e a desqualificação do debate público.
Criado em 2005 com o curioso nome de “Instituto da Realidade”,
transformou-se em Millenium em dezembro de 2009 após ser qualificado
como Organização Social de Interesse Público (Oscip) pelo Ministério da
Justiça. Bem a tempo de se integrar de corpo e alma à campanha de José
Serra, do PSDB, nas eleições presidenciais de 2010. Em pouco tempo,
aparelhado por um batalhão de “especialistas”, virou um bunker
antiesquerda e principal irradiador do ódio de classe e do ressentimento
eleitoral dedicado até hoje ao ex-presidente Lula.
O batalhão de “especialistas” conta com 180
profissionais de diversas áreas, entre eles, o jornalista José Nêumanne
Pinto, o historiador Roberto DaMatta e o economista Rodrigo Constantino,
autor do recém-lançado Privatize Já. A obra é um libelo privatizante feito sob encomenda para se contrapor ao livro A Privataria Tucana,
do jornalista Amaury Ribeiro Jr., sobre as privatizações nos governos
de Fernando Henrique Cardoso que beneficiaram Serra e seus familiares. E
não há um único dos senhores envolvidos com as privatizações dos anos
1990 que hoje não nade em dinheiro.
Os “especialistas” são todos, curiosamente, brancos. Talvez por conta
da adesão furiosa da agremiação aos manifestantes anticotas raciais. A
tropa é comandada pelo jornalista Eurípedes Alcântara, diretor de
redação da revista Veja, publicação onde, semanalmente, o
Millenium vê seus evangelhos e autos de fé renovados. Alcântara é um dos
dois titulares do Conselho Editorial da entidade. O outro é Antonio
Carlos Pereira, editorialista de O Estado de S. Paulo.
Alcântara e Pereira não são presenças aleatórias, tampouco foram
nomeados por filtros da meritocracia, conceito caríssimo ao instituto. A
dupla de jornalistas representa dois dos quatro conglomerados de mídia
que formam a bússola ideológica da entidade, a Editora Abril e o Grupo
Estado. Os demais são as Organizações Globo e a Rede Brasil Sul (RBS).
O Millenium possui uma direção administrativa
formada por dez integrantes, entre os quais destaca-se a
diretora-executiva Priscila Barbosa Pereira Pinto. Embora seja a
principal executiva de um instituto que tem entre suas maiores bandeiras
a defesa da liberdade de imprensa e de expressão – e à livre circulação
de ideias –, Priscila Pinto não se mostrou muito disposta a fornecer
informações a CartaCapital. A executiva recusou-se a explicar o formidável organograma que inclui uma enorme gama de empresas e empresários.
Entre os “mantenedores e parceiros”, responsáveis pelo suporte
financeiro do instituto, estão empresas como a Gerdau, a Localiza (maior
locadora de veículos do País) e a Statoil, companhia norueguesa de
petróleo. No “grupo máster” aparece a Suzano, gigante nacional de
produção de papel e celulose. No chamado “grupo de apoio” estão a RBS, o
Estadão e o Grupo Meio & Mensagem.
Há ainda uma lista de 25 doadores permanentes, entre os quais, se
incluem o vice-presidente das Organizações Globo, João Roberto Marinho, o
ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga e o presidente da
Coteminas, Josué Gomes da Silva, filho do falecido empresário José
Alencar da Silva, vice-presidente da República nos dois mandatos de
Lula. O organograma do clube da reação possui também uma “câmara de
fundadores e curadores” (22 integrantes, entre eles o ex-presidente do
Banco Central Gustavo Franco e o jornalista Pedro Bial), uma “câmara de
mantenedores” (14 pessoas) e uma “câmara de instituições” com nove
membros. Gente demais para uma simples instituição sem fins lucrativos.
Uma das atividades fundamentais é a cooptação, via concessão de
bolsas de estudo no exterior, de jovens jornalistas brasileiros. Esse
trabalho não é feito diretamente pelo instituto, mas por um de seus
agregados, o Instituto Ling, mantido pelo empresário William Ling, dono
da Petropar, gigante do setor de petroquímicos. Endereçado a
profissionais com idades entre 24 e 30 anos, o programa “Jornalista de
Visão” concede bolsas de mestrado ou especialização em universidades dos
Estados Unidos e da Europa a funcionários dos grupos de mídia ligados
ao Millenium.
Em 2010, quando o programa se iniciou, cinco jornalistas foram escolhidos, um de cada representante da mídia vincula-da ao Millenium: Época (Globo), Veja (Abril), O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo e Zero Hora (RBS). Em 2011, à exceção de um repórter do jornal A Tarde, da Bahia, o critério de escolha se manteve. Os agraciados foram da Época (2), Estadão (1), Folha (2), Zero Hora (1) e revista Galileu (1), da Editora Globo. Neste ano foram contemplados três jornalistas do Estadão, dois da Folha, um da rádio CBN (Globo), um da Veja, um do jornal O Globo e um da revista Capital Aberto, especializada em mercado de capitais.
Para ser escolhido, segundo as diretrizes apresentadas pelo Instituto
Ling, o interessado não deve ser filiado a partidos políticos e
demonstrar “capacidade de liderança, independência e espírito crítico”.
Os aprovados são apresentados durante um café da manhã na entidade, na
primeira semana de agosto, e são obrigados a fazer uma espécie de
juramento: prometer trabalhar “pelo fortalecimento da imprensa no
Brasil, defendendo os valores de independência, democracia,
economia de
mercado, Estado de Direito e liberdade”.
O Millenium investe ainda em palestras, lançamentos de livros e
debates abertos ao público, quase sempre voltados para assuntos
econômicos e para a discussão tão obsessiva quanto inútil sobre
liberdade de imprensa e liberdade de expressão. Todo ano, por exemplo, o
Millenium promove o “Dia da Liberdade de Impostos” e organiza os
debates “Democracia e Liberdade de Expressão”. Entre os astros
especialmente convidados para esses eventos estão Marcelo Tas, da Band, e
Diogo Mainardi e Reinaldo Azevedo, ambos de Veja. Humoristas jornalistas. Ou vice-versa.
O que toda essa gente faz e quanto cada um doa individualmente é mantido em segredo. Apesar da insistência de CartaCapital,
a diretora-executiva Priscila Pinto mandou informar, via assessoria de
imprensa, que não iria fornecer as informações requisitadas pela
reportagem. Limitou-se a enviar nota oficial com um resumo da longa
apresentação reproduzida na página eletrônica do Millenium sobre a
missão do instituto. Entre eles, listado na rubrica “código de valores”,
consta a premissa da transparência, voltada para “possibilidade de
fiscalização pela sociedade civil e imprensa”. Valores, como se vê, bem
flexíveis.
Josué Gomes e Gerdau também não atenderam aos
pedidos de entrevista. O silêncio impede, no caso do primeiro, que se
entenda o motivo de ele contribuir com um instituto cuja maioria dos
integrantes sistematicamente atacou o governo do qual seu pai não só
participou como foi um dos mais firmes defensores. E se ele é contra,
por exemplo, a redução dos juros brasileiros a níveis civilizados. O
industrial José Alencar passou os oito anos no governo a reclamar das
taxas cobradas no Brasil. A turma do Millenium, ao contrário, brada
contra o “intervencionismo estatal” na queda de braço entre o Palácio do
Planalto e os bancos pela queda nos spreads cobrados dos consumidores
finais.
No caso de Gerdau, seria interessante saber se o empresário,
integrante da câmara de gestão federal, concorda com a tese de que a
tentativa de redução no preço de energia é uma “intervenção descabida”
do Estado, tese defendida pelo instituto que ele financia. Gerdau e
Josué se perfilam, de forma consciente ou não, ao Movimento Endireita
Brasil, defensor de teses esdrúxulas como a de que os militares
golpistas de 1964 eram todos de esquerda.
O que há de transparência no Millenium não vem do espírito
democrático de seus diretores, mas de uma obrigação legal comum a todas
as ONGs certificadas pelo Ministério da Justiça. Essas entidades são
obrigadas a disponibilizar ao público os dados administrativos e
informações contábeis atualizadas. A direção do instituto se negou a
informar à revista os valores pagos individualmente pelos doadores,
assim como não quis discriminar o tamanho dos aportes financeiros feitos
pelas empresas associadas.
A contabilidade disponível no Ministério da Justiça, contudo, revela a
pujança da receita da entidade, uma média de 1 milhão de reais nos
últimos dois anos. Em três anos de funcionamento auditados pelo governo
(2009, 2010 e 2011), o Millenium deu prejuízos em dois deles.
Em 2009, quando foi certificado pelo Ministério da Justiça, o
instituto conseguiu arrecadar 595,2 mil reais, 51% dos quais oriundos de
doadores pessoas físicas e os demais 49% de recursos vindos de empresas
privadas. Havia então quatro funcionários remunerados, embora a direção
do Millenium não revele quem sejam, nem muito menos quanto recebem do
instituto. Naquele ano, a entidade fechou as contas com prejuízo de 8,9
mil reais.
Em 2010, graças à adesão maciça de empresários e doadores
antipetistas em geral, a arrecadação do Millenium praticamente dobrou. A
receita no ano eleitoral foi de 1 milhão de reais, dos quais 65% vieram
de doações de empresas privadas. O número de funcionários remunerados
quase dobrou, de quatro para sete, e as contas fecharam no azul, com
superávit de 153,9 mil reais.
Segundo as informações referentes ao exercício de 2011, a arrecadação
do Millenium caiu pouco (951,9 mil reais) e se manteve na mesma relação
porcentual de doadores (65% de empresas privadas, 35% de doações de
pessoas físicas). O problema foi fechar as contas. No ano passado, a
entidade amargou um prejuízo de 76,6 mil reais, mixaria para o volume de
recursos reunidos em torno dos patrocinadores e mantenedores. Apenas
com verbas publicitárias repassadas pelo governo federal, a turma
midiática do Millenium faturou no ano passado 112,7 milhões de reais.
Carta Capital
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