quinta-feira, 14 de julho de 2016

Temer ignorou pedidos da PF para se explicar no caso da propina no Porto de Santos. Por Marcelo Auler

Postado em 13 Jul 2016

Ele

Esta é a primeira reportagem da série sobre o envolvimento de Michel Temer nos escândalos do Porto de Santos e do Aeroporto de Guarulhos. É resultado da nova campanha de crowdfunding do DCM, com a qual você pode contribuir aqui. Outras matérias virão.

Em 2009, ao presidir a Câmara dos Deputados, o hoje vice-presidente no exercício da presidência, Michel Temer, deixou sem resposta três convites da Polícia Federal que lhe abriam a chance de refutar as acusações de receber propinas de empresas que atuavam no Porto de Santos.

Ao desprezá-los, ele não só ajudou a manter viva a suspeita de se beneficiar do esquema fraudulento, como decepcionou um antigo aluno e grande admirador: o delegado federal Cássio Luiz Guimarães Nogueira.

Nogueira, lotado na delegacia da Polícia Federal em Santos, foi quem presidiu, a partir de 2008, o Inquérito Policial nº 5.104, instaurado em 2006. Este lhe caiu nas mãos por acaso, junto com outros, quando voltou a presidir investigações. Tratava de possíveis fraudes à lei de licitações e também lavagem de dinheiro, envolvendo a Companhia Docas do Estado de São Paulo (CODESP).

Eram fatos que, pessoalmente, o delegado desconhecia, embora até já tivessem aparecido em páginas de revistas e jornais. Seria mais um entre os muitos inquéritos que teria que tocar, não fosse um detalhe a lhe chamar a atenção: o envolvimento de seu ex-professor Michel Temer.

No meio da papelada, estava a petição inicial do processo de Reconhecimento e Dissolução Estável, Cumulada com Partilha e Pedido de Alimentos (Ação 00632820-2), ajuizada na 3ª Vara de Família, Órfãos e Sucessão, de São Paulo.

Quem a propôs foi Érika Santos, então estudante de psicologia, contra seu ex-companheiro Marcelo de Azeredo, que ocupou diversos cargos públicos desde 1987, culminando com a presidência da CODESP (1995/1998), sempre indicado por Michel Temer, prócer do PMDB, como admitiu Érika. Para este último cargo, a indicação política foi no então governo tucano de Mario Covas (janeiro de 1995 a março de 2001).

Viagens e espancamentos – Érika, aos 20 anos, em 1997, enamorou-se de Marcelo e com ele teve uma vida conjugal logo após se conhecerem em Brasília, onde ela se preparava para o vestibular. Por conta da relação, abandonou a família e mudou-se para São Paulo. Se, por um lado, beneficiou-se de passeios pela Europa – incluindo uma romântica travessia de gôndola pelos canais de Veneza -, Estados Unidos e Américas Central e do Sul, teve também momentos de horrores e dissabores, como contou na ação ao justificar o fim do relacionamento:

“Sempre que exagerava no consumo de álcool, o que ocorria quase que diariamente, pois o requerido (Marcelo) tomava um verdadeiro coquetel quase todos os dias, de meia garrafa de wodka, com medicamentos “faixa preta”, tais como “inibex” e “dormonid”, voltava sua violência para a requerente, agredindo-a inúmeras vezes.

A gota d’água teria sido no ano de 2000 quando, quando novas violentas agressões, em abril e julho, a levaram a sair da casa dele.

Curiosamente, na ação apresentadas à Vara de Família ela revela estas agressões sofridas em 2000. Mas o documento apresenta como data 11 de agosto de 1999. Como o processo corre em segredo de Justiça, fica difícil verificar a data real em que ele foi iniciado.


Na ação, Michel Temer foi citado como beneficiário de propinas arrecadadas por Azeredo, após indicá-lo para a CODESP. Temer nega, hoje, esta indicação. Mas, ela foi confessada pelo próprio interino ao participar, já no cargo, da primeira reunião de diretoria. Por causa desta indicação é que, segundo Érika, o então deputado ficava com 50% da “caixinha” que as empresas pagavam o que teria lhe rendido R$ 2.726.750,00.

O documento era de 1999. Já fora noticiado pela revista Veja, em matéria do repórter Rudolfo Lago, em março de 2001. Mas Nogueira desconhecia aqueles fatos suficientes para, se comprovados, derrubarem a imagem que cultivava do antigo mestre.

“Ele não de me deu aula diretamente, mas era titular de cadeira e dava aulas de Direito Constitucional na PUC.Tanto ele como Franco Montoro eram pessoas de renome que eu admirava muito e que faziam parte desta nata de professores da PUC de São Paulo. Eu era profundo admirador do professor Michel Temer. O histórico de carreira dele, para mim, era um alento, talvez até servisse de uma bússola profissional. Foi um dos melhores secretários de Segurança Pública que o Estado de São Paulo já teve.Tanto é que, em uma das noites na PUC eu pedi para ele autografar o meu livro, Os Elementos de Direito Constitucional, que guardo até hoje”, diz Nogueira, que após 27 anos de polícia, 17 como delegado federal, aposentou-se e advoga.
O delegado Nogueira

A dedicatória do autor e professor de Direito Constitucional nada tem de especial, foi tipo padrão: “Ao prezado amigo Cássio, com os cumprimentos do Michel Temer”.

Além de toda a admiração que Nogueira nutriu pelo antigo mestre, há outro detalhe de sua vida atual que afasta a possibilidades de tentarem lhe impingir qualquer interesse escuso,ou mesmo político/partidário quando comenta tais fatos. Nas últimas eleições municipais em Santos, concorreu a vereador pelo PSDB, partido ao qual continua filiado.

Investigação paralisada – No seu primeiro contato com o inquérito, constatou que, embora tramitando há dois anos, a investigação não tinha avançado.

Entre os documentos acostados aos autos, uma espécie de planilha detalhava os valores, como ele narra:

“Pois bem, havia alguns códigos, percentagens etc. e tal. Havia indicação de duas letras MT e a própria Érika indicava na sua petição inicial que este MT significava Michel Temer. Para mim foi uma surpresa muito grande”.

Matéria sobre o caso na Veja do tempo em que Temer era “inimigo”

Explicações na tribuna – Quando a denúncia de Érika veio a público, conforme Nogueira apurou anos depois, teve “o efeito de uma bomba, na cidade, dentro da comunidade portuária de Santos, etc..”

Porém, tão surpreendente quanto à denúncia em si, foi a decisão da ex-companheira de Azeredo ter desistido da ação. Curiosamente, não há qualquer documento público confirmando tal desistência.

Ela foi narrada, pelo próprio Temer, em discurso na Câmara dos Deputados, onde já não ocupava a presidência, em março de 2001, logo após a circulação da reportagem de Rudolfo Lago. Na justificativa de Érika, lida por ele sem citar os nomes dos envolvidos, como se isto fosse um mistério, constava:

Quero até revelar a minha surpresa em função da matéria publicada, porque contratei novo advogado, de nome José Manuel Paredes, que foi quem me fez entender a minha real situação jurídica com relação ao Sr. — fulano de tal, que era o companheiro dela — e que me motivou a pedir a desistência da ação proposta na 3ª Vara da Família e das Sucessões de São Paulo, sendo que inclusive já foi até homologada por sentença, pela Juíza.

Para não deixar dúvida em relação ao histórico contido na peça inicial daquela ação, a qual eu não subscrevi, esclareço que os documentos mencionados nela não foram tirados do computador pessoal do meu ex — companheiro fulano de tal, como foi dito —, mas sim chegaram-me às mãos, anonimamente, em envelope fechado, sem identificação do remetente. Entreguei os tais documentos aos meus ex-advogados para simples análise e não para serem utilizados, já que não tinha certeza nenhuma da verdade do conteúdo e da sua origem.

Patrimônio incompatível – Nas explicações de Temer, Érika destituiu os advogados anteriores – Martinico Izidoro Livovschi e Sérgio Paulo Livovschi – por eles terem usado os documentos que disse lhe terem sido encaminhados por fonte anônima. A destituição ocorreu por notificação, através de um instrumento público, em 21 de dezembro do ano 2000.

Apesar de toda a disposição de Érika em esclarecer a pendenga jurídica ao então deputado Temer em 2001, seis anos depois, quando o delegado Nogueira a quis ouvir, não a encontrou.

“E assim, surpreendentemente, ela desistiu da ação pouco tempo depois e, simplesmente, sumiu. Ninguém tomou conhecimento… nem nós da Polícia Federal sabíamos qual que era seu endereço, se ela tinha mudado de cidade, se ela tinha mudado de país. O fato é que a menina tinha sumido e sem a gente saber exatamente o porquê dela ter desistido da ação. Foi uma coisa muito surpreendente, inesperada, abrupta. E era um dos pontos que a gente pretendia insistir nesta investigação para que ela pudesse evoluir, para que ela pudesse buscar mais fundamentos, porque ela afirmava que este MT queria dizer um código para Michel Temer, coisas que não tínhamos até então”, me explicou o delegado.

Marcelo de Azeredo, indicado por Temer

Àquela altura, por meio de consulta à Receita Federal, Nogueira confirmou que Azeredo apresentava um padrão de vida nada compatível com seus ganhos oficiais. Entre eles um Porsche, modelo Carrera, ano 1997, placa CMP 0019.

“Segundo os informes que circulavam aqui, dentro do Porto de Santos também nós apuramos que por vezes ele chegava de helicóptero para dar expediente na CODESP”.

Sem conseguir localizar Érika, e achando que ainda não era o momento de interrogar Azeredo, Nogueira não tinha como confirmar as informações apresentadas na Ação da Vara de Família. Foi quando tentou ouvir o deputado Michel Temer, seu antigo professor, cuja carreira, como confessou, lhe servia de exemplo. Surge a grande decepção.

Pessoalmente, em 2009, ele assinou dois ofícios pedindo ao já novamente presidente da Câmara (2009/2010), que marcasse dia, hora e local para falar, na condição de testemunha. O terceiro “convite” foi encaminhado por um colega que o substituiu provisoriamente no inquérito, quando, por férias ou por missão fora de Santos, afastou-se temporariamente do caso.

Temer, que em março de 2001, na tribuna da Câmara, fez questão de ressaltar o interesse em limpar seu nome, manter sua honra, àquela altura parece que já não tinha a mesma preocupação. Não houve qualquer resposta aos três ofícios. Os superiores de Nogueira chegaram a questioná-lo se as cartas tinham sido mesmo entregues na Câmara dos Deputados?

Chance para se explicar – “A minha iniciativa, o meu direcionamento no inquérito foi dar a chance para que ele pudesse refutar essas afirmações. Acho que é do interesse. Sempre que alguém está comentando um tipo de infâmias a seu respeito, você tem que dar oportunidade à outra parte de se manifestar. Foi isso que eu fiz. Eu encaminhei ofícios pedindo ao então presidente da Câmara, Michel Temer, para marcar dia, hora e local para que pudesse prestar declarações. Ele seria ouvido como testemunha. Dizer o que ele tinha a dizer a respeito destas afirmações da Érika. Infelizmente não houve sucesso nessa empreitada”, lamenta.

Sem localizar Erika nos endereços dela de Santos e os que estavam na procuração dada aos advogados, e não obtendo resposta do convite a Temer, Nogueira traçou outra linha de atuação. Pensava em utilizar-se das chamadas “medidas invasivas”, entre as quais, os grampos telefônicos.

Para tal era necessária a devida autorização judicial. Mas, por envolver um personagem com direito a foro especial – Temer –, ela deveria ser emitida por corte competente, no caso o Supremo Tribunal Federal:

“Entendi que era o caso de encaminhar para o Supremo. Não para que fosse oferecida a denúncia, porque não havia no inquérito elementos suficientes para isso. Mas sim, que fosse encaminhado para o Supremo, aforado perante o Supremo para que, a partir daí pudessem ser requeridas medidas necessárias, inclusive invasivas da privacidade e que não viessem ser contestadas futuramente”.

A dedicatória feita pelo interino no livro do delegado

Arquivamento sem investigação – A proposta feita por ele à procuradora da República que atuava em Santos, Juliana Mendes Daun, foi prontamente acatada, o inquérito remetido à Justiça, onde ganhou o número 2004.61.81.001582-7 e remetido ao Supremo. Lá, só foi dar entrada em 28 de fevereiro de 2011, aforado com o número 3105/SP, caiu na relatoria do ministro Marco Aurélio Mello. Àquela altura, Temer já era o 24° vice-presidente do país, no primeiro mandato de Dilma Rousseff.

O relator entendeu desnecessário o sigilo em torno do caso, determinou que apenas os apensos fossem envelopados e lacrados, para não serem acessados por estranhos. Ainda assim, misteriosamente até sexta-feira (08/07) o caso continuava com tramitação oculta dentro daquela corte.

A denúncia de Erika já circulara pelo Supremo anteriormente, através de peças encaminhadas àquela corte pela Vara de Família. Mas tramitaram como Procedimento Administrativo. Foi como tal que ela chegou às mãos do então Procurador-Geral da República, Geraldo Brindeiro, já à época conhecido como “engavetador da República”, sempre que um caso mexesse com figuras importantes, notadamente ligadas apo esquema político do Palácio do Planalto.

Brindeiro, também neste episódio, não desmereceu o apelido. Com base apenas nos documentos encaminhados pela Vara de Família, ele determinou o arquivamento “em face da inexistência de suporte mínimo de indícios a justificarem a persecução penal, tampouco a prática de qualquer crime por parte do deputado federal Michel Temer”.

Quando o inquérito 3105/SP, em 2011, foi remetido pelo ministro Marco Aurélio para a apreciação do então procurador-geral da República, Roberto Monteiro Gurgel Santos, ele considerou que “as provas colhidas no curso da investigação não trouxeram elementos novos que autorizem a reabertura da investigação, já arquivada, contra Michel Temer.

No seu despacho, Gurgel não se ateve à proposta do delegado Nogueira, e insistiu na tese que “todas as diligências realizadas tiveram por objetos fatos relacionados a Marcelo de Azeredo, seja em decorrência do suposto acréscimo patrimonial a descoberto, seja em razão de eventuais atos praticados na condição de presidente da Companhia de Docas do estado de São Paulo”.

E foi assim que concluiu, em 8 de abril de 2011, que “as diligências realizadas enquanto a investigação tramitou perante a Polícia Federal não trouxeram novas provas dos fatos em apuração que evidenciassem qualquer envolvimento de Michel Temer, não havendo, portanto, justa causa para a tramitação do presente inquérito”.

Ou seja, como o delegado tinha dito que dependia de novas investigações, conclui-se que encerraram o caso em relação ao já então vice-presidente sem que ele, na verdade, fosse investigado. Nem mesmo chegou a ser ouvido. Não conseguiu apagar a pecha de ter se beneficiado da caixinha no Porto de Santos. Algo que lhe acompanhará eternamente, tanto quanto o papel de conspirador.


Sobre o Autor
Jornalista e escritor com passagem por virtualmente todos os órgão de comunicação do Brasil. Autor do blog http://www.marceloauler.com.br/sobre-mim/



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