Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em
Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente
em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época.
Também escreveu "A Mulher que Era o Outro General da Casa"
Confesso que saí atordoado do STF, ontem. Não foi a vitória de Joaquim Barbosa que causou surpresa.
Ouvi um ministro, Luís Roberto Barroso,
dizer que concordava com o revisor Ricardo Lewandovski, mas que iria
votar com Joaquim Barbosa porque estava acabando de chegar ao STF. Não
se sentia no direito de questionar a primeira fase do julgamento, quando
ainda não fazia parte do tribunal.
Se estivesse no STF desde o início, explicou Barroso, "muito
provavelmente me inclinaria pela tese dele [Lewandowski]. Mudaria a
situação não só desse réu, mas de muitos outros". O ministro afirmou
ainda: "Fiz escolha difícil ao começar a participar deste julgamento.
Foi a de que eu serviria melhor à Justiça e ao país se eu chegasse para
não revirar um julgamento que consumira mais de 50 sessões deste
plenário. Se o tribunal se dispusesse a reabrir o debate,
participaria".
Barroso é um ministro de cultura jurídica reconhecida. Demonstrou
que é capaz de convicções firmes, a ponto de ter sido um dos advogados
do direito de permanência de Cesare Battisti no país, num caso que abriu
uma polêmica de alta temperatura, com repercussão internacional,
inclusive.
Até por esse motivo, sua intervenção no julgamento causou espanto.
Como é que um ministro do STF pode achar que fez uma “escolha difícil?”
Escolheu entre o que e o quê?
Comentando o caso, mestre Jânio de Freitas afirma, na Folha de
hoje, que se Barroso concluiu que havia mesmo um erro no julgamento,
deveria lutar para refazer os trabalhos. Janio explica, num parágrafo
que vale a pena ler por inteiro:
“Para aprimorar os julgamentos é que recebeu a cadeira ambicionada.
Seu argumento adicional não foi melhor: ‘teríamos que reabrir o
processo. E Deixar uma sentença, seja de condenação ou d’e absolvição,
prevalecer apesar de lhe parecer errada, contanto que não se reabra o
processo, é mesmo próprio de magistrado?”
Retomando. Quando foi sabatinado no Senado, responsável por sua
indicação, Barroso disse que considerava o julgamento do mensalão “um
ponto fora da curva do STF.”
Queria dizer que as penas haviam sido muito duras e que o tribunal não havia atuado de acordo com a tradição, de Corte que não abre mão dos direitos e garantias do indivíduo frente ao Estado.
Queria dizer que as penas haviam sido muito duras e que o tribunal não havia atuado de acordo com a tradição, de Corte que não abre mão dos direitos e garantias do indivíduo frente ao Estado.
Na primeira oportunidade, num julgamento que irá ter influencia
sobre as instâncias inferiores do judiciário e terá consequências
terríveis para cidadãos que podem ter sido vítimas de uma injustiça,
Barroso alega que não iria “revirar um julgamento que consumira mais de
50 sessões deste plenário.”
O voto decepcionou advogados e mestres do Direito que, confiando
nos pontos de vista que Barroso defendeu publicamente ao longo de sua
vida de jurista muito respeitado, imaginavam que um ministro com sua
liderança e sua independência seria capaz de enfrentar um debate
sabidamente difícil. As vozes minoritárias do STF são chamadas de
“mensaleiras”, hostilizadas nas ruas e alvo de permanente vigilância por
parte dos meios de comunicação.
Se o ministro tivesse votado com Lewandovski, como admitiu que
seria sua provável inclinação, a minoria teria obtido 4 votos, e não 3, o
que daria um novo quadro ao julgamento. Mesmo vencidos, os réus teriam
oportunidade de entrar com novos recursos. O STF teria enviado um sinal
político diferente em relação a 2012.
Data vênia, eu acho preocupante. Barroso não disse que discordava
dos ministros que queriam mudar a situação de determinados réus, opinião
que seria válida como qualquer outra.
Barroso sugeriu que não se sentia à vontade para um gesto dessa
natureza, como se a condição de novato fosse um entrave à plenitude de
sua atuação. Admitiu, em resumo, que não votaria conforme sua
consciência de jurista.
Talvez eu esteja fazendo o papel de idealista, inspirado pelo
frescor absoluto de um grupo de adolescentes de São Paulo que visitou o
STF na tarde ontem, com sua curiosidade, nenhum medo de fazer perguntas e
a vontade pura de viver num mundo que separa o certo do errado.
Mas eu acho – talvez em minha ingenuidade -- que um ministro tem o
dever de votar de acordo com seu pensamento, por mais exótico que
pareça, por mais incômodo que possa causar aos colegas.
Se Joaquim Barbosa fez o que fez na semana passada e nem se sentiu
obrigado a pedir desculpas a Ricardo Lewandovski na retomada dos
trabalhos, limitando-se a afirmar que possui uma visão “bastante
peculiar da presidência do STF,” eu acho bom recordar que estamos numa
realidade dura e áspera, em que é urgente saber onde se pisa e aonde se
quer chegar. Ninguém está no STF a passeio.
Advogados presentes no tribunal me explicaram que a posição de
Barroso tem mais pontos de sustentação do que um ignorante como eu
poderia perceber. É muito possível e muito provável. Mas foi o ministro
que fez o contrário do que disse que pensava.
Para falar com clareza: ninguém planejava, ontem, refilmar O Homem que Matou o Facínora na Praça dos Três Poderes.
Não precisamos de heróis. Precisamos de juízes.
E já que estamos no STF, precisamos de juízes soberanos.
Estranhei quando o decano Celso de Mello disse, para justificar um
voto que acompanhava Joaquim Barbosa, que o STF era obrigado a deliberar
exclusivamente sobre aquilo que fora denunciado pelo ministério público
e que, por essa razão, não se poderia aceitar alegações e provas que
haviam sido descartadas pelo promotor geral Roberto Gurgel.
Achei estranho porque, meses atrás, extrapolando abertamente os
próprios poderes, o Supremo popularizou a visão errada de que “a
Constituição é aquilo que o STF diz que ela é.”
Chegou a ponto de votar contra o artigo 55 da carta de 1988, que
estipula claramente que só o Congresso tem poderes para definir a perda
de mandato de senadores e deputados.
É evidente que não é obrigado a submeter-se ao procurador geral da República, certo?
Num tribunal que aprovou o regime de cotas, definiu reservas
indígenas e tomou tantas decisões favoráveis aos chamados direitos de
minorias, essa alegação é estranha demais, formal demais.
Mas é engraçado registrar que, quando se queria cassar mandatos, valia atropelar um artigo da Constituição.
Quando não se quer rever uma condenação, alega-se que Roberto Gurgel tem a última palavra sobre os trabalhos em curso.
Este aspecto tem particular importância aqui. Submetidos a um
julgamento em fase única, sem direito a um segundo exame de suas penas,
os condenados do mensalão foram colocados, contra toda jurisprudência –
inclusive do mensalão mineiro, do mensalão do DEM de Brasília – num foro
privilegiado que se mostrou uma armadilha a seus direitos.
Por decisão da acusação, alguns réus foram investigados em segredo e
serão julgados em separado, pela justiça comum -- se é que isso vai
acontecer, um dia. Documentos que poderiam auxiliar a defesa não foram
oferecidos a seus advogados, durante o processo. Divulgado neste espaço
em maio de 2012, o inquérito do delegado Luiz Flavio Zampronha, da
Polícia Federal, deixa claro que não se encontrou o menor indício
daquele esquema que Roberto Jefferson definiu como mensalão. Ele também
concluiu que os empréstimos do Banco Rural, apontados como fraude,
envolviam negociações efetivas entre o PT e a instituição.
Diretores do Banco do Brasil com responsabilidade até maior do que
Henrique Pizzolatto na definição de recursos que, segundo a acusação,
estão na origem do mensalão, se encontram nessa situação, realmente
privilegiada. Empresários que foram ouvidos no processo e que admitiram
ter participação com $$$ grosso no esquema de Delúbio Soares e Marcos
Valério, em contratos superiores a tudo o que se disse que saiu do Banco
do Brasil, não se sentaram no banco dos réus.
O julgamento ocorre num ambiente político, alimentado por
sucessivas demonstrações de força e é assim que cada palavra, cada
“mas”, cada “talvez”, cada “possível”, se explica.
O quadro foi bem desenhado pelos repórteres Felipe Recondo e Debora
Bergamasco, dias antes da retomada do julgamento. Falando da condenação
aprovada em clima de redenção nacional no final de 2012 e da reflexão
estimulada a partir dos embargos e recursos, os dois escreveram no
Estado de S. Paulo:
“Há ministros que se mostram ‘arrependidos de seus votos’ por
admitirem que algumas falhas apontadas pelos advogados de defesa fazem
sentido. O problema (...) é que esses mesmos ministros não veem nenhuma
brecha para um recuo neste momento. O dilema entre os que acham que
foram duros demais nas sentenças é encontrar um meio termo entre rever
parte do voto sem correr o risco de sofrer desgaste com a opinião
pública.”
Este é o ponto.
E aqui chegamos ao debate de ontem. Estava em pauta o destino do
Bispo Rodrigues, ex-deputado pelo PL. Ele foi condenado porque solicitou
benefício em dinheiro para fazer parte da base do PT. Também se
considerou que, em troca de dinheiro, votou com o governo em duas
reformas importantes de 2003 e assim por diante. Ao fazer a denúncia que
colocou o bispo no banco dos réus, o procurador-geral disse que era
possível provar que ele havia negociado apoio, organizado a votação da
bancada e até recebido uma primeira parcela da remuneração, R$ 250.000.
Também se podia provar que ele havia recebido uma segunda parcela, de R$
150.000, paga em 2003. Em suas alegações finais contra Rodrigues, o
Ministério Público mudou a acusação. Alegou que não possuía a maioria
das provas anunciadas anteriormente. Disse que só poderia provar o
recebimento da última parcela, de R$ 150.000. Não é um detalhe.
Condenado pelas provas anteriores, Rodrigues seria enquadrado na lei
anterior de corrupção, que prevê penas inferiores à lei atual. Se fosse
condenado exclusivamente pelos R$ 150.000, estaria condenado pela nova
lei, que dobrou a pena mínima e elevou também outras condenações.
Alinhado com Gurgel, Joaquim Barbosa defendeu a pena mais dura,
concordando com as alegações do procurador-geral. Lewandovski, que na
fase inicial havia votado com a acusação, mudou de opinião e explicou
por quê. Afirmou que os autos mostravam o que nem todos haviam
percebido: o Ministério Público manipulou provas, escondendo aquelas que
não convinham, mostrando aquelas que interessavam. Lewandovski também
lembrou que a situação poderia ser comparada à do cidadão que suborna um
guarda de trânsito ao ser apanhado pela Lei Seca. Mesmo que tenha
dividido o pagamento da propina em duas prestações, estamos falando de
um crime só.
Numa intervenção bem meditada, Marco Aurélio Melo lembrou que a
acusação contra o bispo Rodrigues formava um conjunto, que incluía desde
o acordo de campanha do PL – partido do vice-presidente José Alencar –,
passando por duas votações no Congresso e o pagamento em dinheiro. Para
sublinhar o absurdo de ignorar as outras provas e condenar o
ex-deputado pelo pagamento da última prestação, Marco Aurélio fez a
pergunta que não quer calar: “se não tivesse havido o último pagamento,
não teria havido corrupção?”
Ninguém estava discutindo a absolvição do ex-deputado Rodrigues.
Não se pretendia dizer que não era culpado. O que seria era uma pena
justa, de acordo com os autos e as leis em vigor na época em que os
fatos ocorreram.
A retomada dos trabalhos foi acompanhada pelas conversas de que o
julgamento está se prolongando demais. Eu acho que tempo é um critério
da política, que tem seus calendários eleitorais, e também da TV, onde
novelas duram entre três ou quatro meses, conforme o Ibope. Considerando
que 37 réus estavam sob julgamento, e que muitos deles foram condenados
a penas duríssimas, que não se aplicam no Brasil nem em casos de
tortura, sequestro seguido de morte, parricídio ou infanticídio, temos
menos de 2 sessões por cabeça. É até pouco do ponto de vista da
preservação dos direitos individuais, vamos combinar.
Isto É
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