"Qual rumo pode tomar uma nação que fragiliza a presunção de inocência em nome da promoção de prisões para se acabar com sentimentos difusos de impunidade? Dar força a órgãos acusadores, que podem trancafiar seres humanos em masmorras, em detrimento de suas garantias legais, certamente não fará com que o Brasil avance no campo da democracia", diz Marcus Vinícius Furtado Coêlho, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil
23 DE SETEMBRO DE 2015 ÀS 04:59
247 – Em artigo publicado nesta quarta-feira, o presidente da OAB, Marcus Vinícius Furtado Coêlho, condena o excesso de prisões preventivas e temporárias. Confira:
A prisão antes da hora
É sombrio o futuro de uma nação que fragiliza a presunção de inocência para pretensamente acabar com sentimentos de impunidade
Por Marcus Vinícius Furtado Coelho
Em tempos difíceis, não raro as sociedades buscam saídas fáceis para resolver problemas que, em vez de serem atenuados, acabam por se agravar. Um exemplo básico desse tipo de movimento pode ser visto nos pedidos de pena de morte quando crimes de maior potencial ofensivo ganham o noticiário.
Está em tramitação o Projeto de Lei do Senado nº 402/2015, que tenta derrubar um dos mais importantes pilares de nossa Constituição Federal: a presunção de inocência. O projeto pretende viabilizar o envio para a prisão de pessoas que ainda não foram consideradas culpadas por decisão definitiva da Justiça.
Com esse projeto tenta-se alterar uma das cláusulas pétreas da Constituição sob a justificativa de que réus recorrerem em liberdade seria a causa de uma alegada sensação de impunidade que assola o país.
É bom frisar que, caso o envio de pessoas para a cadeia a qualquer custo acabasse com sensações de impunidade, deveria tal sentimento existir num país com a quarta população carcerária do mundo?
Além disso, sabemos que milhares de julgamentos nos tribunais superiores modificam decisões de órgãos colegiados estaduais. Quem irá restituir a liberdade suprimida indevidamente desses brasileiros?
O processo penal tem por finalidade justamente proteger inocentes frente à atuação punitiva do Estado. Não é um instrumento de opressão estatal; antes, é o meio de assegurar a defesa ampla dos denunciados e a tutela da liberdade.
A Constituição estatui que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Ou seja, não pode haver prisão como antecipação da pena, como já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal, o que torna o projeto inconstitucional.
Além disso, a fragilização de conquistas históricas não parece ser o caminho mais acertado. Entre as justificativas do projeto, defensores dizem que a Constituição expressou as garantias individuais em seu rol mais extenso devido ao receio de que o país passasse novamente por tempos obscuros. Com a democracia firme, não mais haveria necessidade de manter tais avanços.
É exatamente num momento como este que se percebe a sabedoria dos constituintes na fixação das cláusulas pétreas. O texto da Carta buscou justamente evitar iniciativas como a que hoje se apresenta.
Qual rumo pode tomar uma nação que fragiliza a presunção de inocência em nome da promoção de prisões para se acabar com sentimentos difusos de impunidade? Dar força a órgãos acusadores, que podem trancafiar seres humanos em masmorras, em detrimento de suas garantias legais, certamente não fará com que o Brasil avance no campo da democracia.
O devido processo legal existe justamente para que o cidadão possa enfrentar o Estado sem medos. Dentro de uma cela, muitos espíritos se quebram. Na história, quantos já não confessaram crimes que não cometeram unicamente para encerrar o ciclo de violência de que são vítimas no cárcere?
Nosso ordenamento já prevê situações em que pessoas podem ser detidas de forma preventiva. Previstas as hipóteses legais, a prisão cautelar pode ser efetuada. O que não é possível é a antecipação da punição nos termos do projeto.
O bem mais precioso de um cidadão é sua liberdade. Devemos nos lembrar que o arbítrio sempre rondará esquinas da sociedade que hoje, felizmente, não são muito frequentadas. Ao fragilizarmos direitos fundamentais, trazemos para mais perto do sol resquícios do passado que devem permanecer trancafiados nas sombras.
Marcus Vinícius Furtado Coelho é presidente da Ordem dos Advogados do Brasil
Brasil 247
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