Ao cabo de dois anos de governo Dilma, o Brasil, ao
contrário de seus vizinhos sul-americanos, não avançou num um único
mísero passo no caminho da democratização das comunicações. Como pode um
governo democrático e popular, diante do tratamento parcial e não raro
injusto que recebe dos meios, não ter tomado medidas concretas para
democratizar ou, no mínimo, tornar mais plural o sistema de comunicação
do país? O artigo é de Marcos Dantas.
Marcos Dantas (*)
Numa reunião em Brasília, em abril de 2011,
diante de quase 20 lideranças do movimento pela democratização das
comunicações, o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, garantiu que
"até dezembro" submeteria a consulta pública, o ante-projeto de uma nova
Lei Geral de Comunicações, a nossa "Lei dos Meios". Dezembro de 2011
passou – e nada. Dezembro de 2012 acabou de passar, e nem se fala mais
nisso.
É verdade que, com o tempo, o que seria um ante-projeto de
Lei Geral, transformou-se em "perguntas" para um debate público. Não
seria uma má solução. Politicamente, seria uma tentativa de obrigar os "his mater's voice"
do oligopólio mediático a discutir conceitos, no lugar de tocarem o
samba de uma nota só sobre uma fantasmagórica "censura". Mas nem isto
aconteceu. Ao cabo de dois anos de governo Dilma e ministério Bernardo, o
Brasil, ao contrário de seus vizinhos sul-americanos, não avançou num
um único mísero passo no caminho da democratização das comunicações.
O
atual sistema de comunicações que temos é um entulho autoritário que
sobrevive após mais de 25 anos de vigência da atual Constituição
democrática. Até 1964, nas grandes cidades brasileiras, um bom número de
jornais de circulação e influência política similares disputavam os
corações e mentes dos leitores. Se alguém fizer uma pesquisa na imprensa
brasileira pré-64, perceberá sem dificuldade como ela era numerosa mas,
sobretudo, diversificada: cada jornal, cada dia, trazia manchetes
diferentes, destacava temas distintos, competia efetivamente pela
preferên-cia do leitor através do que poderíamos denominar, hoje em dia,
"diferenciação do produto".
Tínhamos no Rio, um grande jornal
nacional-populista ("Última Hora"), jornais de direita ("O Glo-bo"),
jornais de centro liberal ("Jornal do Brasil", "Correio da Manhã"),
jornais popularescos ("O Dia"), jornais de esquerda, de menor tiragem
mas bem visíveis e influentes ("Novos Rumos", "Semanário"), assim como
um jornal de extrema direita, também de menor tiragem mas muito visível e
influente ("Tribuna da Imprensa"). Tudo isso desapareceu. Sobrou "O
Globo".
Contávamos também com uma grande rádio estatal, a
Nacional, audível em todo território brasileiro e fundamental para a
construção de um sentido de identidade brasileira que, apesar dos
pesares, ainda sobrevive até hoje; bem como dezenas de rádios, de
diferentes estilos, em nossas principais cidades. A televisão, dominada
pelo Conglomerado Associado, ainda era incipiente, pouco influenciava as
nossas práticas culturais e as nossas referências informativas.
Em
1962, o Congresso brasileiro aprovou o nosso primeiro Código de
Comunicações, um tipo de lei que em países como Estados Unidos, Reino
Unido, França, Japão, tantos outros já existia desde os anos 20 do
século XX, quando não antes. O Código não tinha nada a ver com imprensa.
Tratava de comunicações eletro-eletrônicas: telefonia, rádio,
televisão.
Entendia, como o mundo (capitalista liberal) sempre
entendeu, que esse tipo de comunicação envolve emprego de recursos
públicos (a começar pelo espectro eletro-magnético) e exerce uma enorme
influência cultural e educativa no conjunto da sociedade, por isto não
podendo ficar à margem de mínimas regras normativas. O Código de 1962,
no entanto, buscou essencialmente tornar claras e menos discricionárias
as regras de concessão ou cassação de concessão, poderes estes deste
então atribu-ídos exclusivamente à União (até então, Estados e até
municípios podiam permitir serviços de telefonia e radiodifusão). Não
tratou do "conteúdo".
Infelizmente, o Código foi posto em prática
pela ditadura civil-militar instalada dois anos depois. Uma de suas
primeiras decisões foi substituir, via decreto-lei, o mais transparente
Conselho Nacional de Comunicações (Contel) pelo mais vertical Ministério
das Comunicações. E se, por um lado, é inegável que tenha feito uma
autêntica revolução nas comunicações brasileiras, tirando-a de um atraso
secular, através da Embratel e da Telebrás, por outro, conduziu esse
processo nos termos de suas políticas autoritárias, elitistas,
concentradoras de renda.
Será então, no contexto de um cenário
maior de desenvolvimentismo elitista e consumista, que as comunicações
brasileiras caminharão para adquirir o perfil que atualmente exibem. A
ditadura privilegiará, com políticas e recursos, a formação e
consolidação de grandes conglomerados midiáticos nacionais. Eles eram
necessários ao capitalismo monopolista que então se consolidava,
exigindo a expansão, no Brasil, de um mercado de consumo conspícuo,
marqueteiro. Um punhado de grandes marcas (automóveis,
eletro-eletrônicos, alimentos e bebidas, bancos, estes também em
acelerado processo de concentração e verticalização) impunha, através de
um conjunto também concentrado de grandes agências publicitárias, um
regime publicitário que exigia poucos veículos para atingir uma enorme
população, em todo o país.
De Manaus a Porto Alegre, de Recife a
Rio Branco, onde havia classe média consumista, esta precisaria ser
conquistada pela mesma mensagem publicitária, mirar-se nos mesmos
comportamentos exibidos nas novelas e programas de auditório, mover-se
pelos mesmos impulsos para comprar os mesmos bens de uma indústria
concentrada econômica e até espacialmente (em São Paulo).
Será
então que, sobre a infraestrutura construída pela estatal Embratel,
avançarão as redes nacionais de televisão, Rede Globo à frente. O grupo
Abril, fundado, nos anos 1950, por um imigrante ítalo-americano que,
antes de chegar ao Brasil trabalhara com Walt Disney na Flórida, lançará
sua revista Veja para convencer a nossa classe média urbana, como já
fazia antes com Pato Donald e Claudia, das delícias do consumismo estilo
american way of life. Em poucos anos, nas pequenas e médias
cidades brasileiras, Veja vai se transformar na segunda fonte de
informação, além do Jornal Nacional da Rede Globo, das famílias com
renda e status para assinar uma revista cujas matérias não lhes
causassem incômodos em uma época quando eram muitos os assuntos que
poderiam incomodar uma classe média emergente e satisfeita.
Nenhuma
regra foi sequer estatuída para limitar o poder desses conglomerados,
como aquelas que existiam até nos Estados Unidos: obrigatoriedade das
emissoras locais transmitirem ao menos 25% de programação local;
proibição de um mesmo grupo controlar radiodifusão e imprensa escrita;
etc.
Ao mesmo tempo, a censura, o boicote econômico e até a
violência política, vão forçando o desaparecimento de vários importantes
veículos: "Última Hora" e "Novos Rumos", por óbvio; mas também o
"Correio da Manhã", o "Diário de Notícias", a revista "O Cruzeiro"...
Mais à frente, até o "Jornal do Brasil" seria levado à decadência e
morte, depois de acreditar que, por seus bons serviços, mereceria
receber um canal de televisão, assim como o recebera o seu maior
adversário, "O Globo".
No Rio de Janeiro, São Paulo e, também,
nas demais capitais e principais cidades brasileiras, o entretenimento e
a notícia, tanto eletro-eletrônicos quanto impressos, tornaram-se
propriedades de um pequeno grupo de grandes famílias midiáticas. Acabou a
diversidade. Aliás, "Última Hora", nos anos 1960, já demonstrara que a
grande tiragem pode não ser suficiente para atrair grandes anunciantes.
Sucesso de público nunca chegou a ser sucesso de anúncios. O "mercado"
sabe punir muito bem quem não reza 100% pela sua cartilha...
Quando
os militares se recolheram aos quartéis e voltaram às suas necessárias
ocupações profissionais (apesar de alguns saudosistas de pijama), os
civis que estavam com eles, já não precisavam deles: poderiam agora
exercer plenamente, com ares e discursos de legitimidade demo-crática,
sua ditadura midiática. Os meios de comunicação elegeram Collor de Melo,
para evitar a eleição de Lula ou Brizola. Os meios derrubaram Collor de
Melo porque estava cobrando muito caro por seus serviços.
Houve
mobilização popular? Claro que houve. Na forma de um grande espetáculo
nas primeiras páginas de jornais e nas telas da TV. Outras mobilizações
populares aconteceram e seguem acontecendo por este país a fora, sem a
mesma "cobertura"...
De um jornal para outro, as manchetes são as
mesmas, de um telejornal para outro, as notícias importantes são
semelhantes. O caso recente do "mensalão" está a merecer um estudo
especial. Menos pela dimensão mediática que o assunto tomou, mais pela
absoluta similitude de tratamento às questões, dada por egrégios juízes,
diplomados jornalistas e doutos "especialistas". Os "especialistas"
então, são um caso à parte: sempre os mesmos e jamais transmitindo
visões contraditórias. Leia-se a Folha ou O Globo e sairemos convencidos
de que só cabe um enfoque para a notícia, só cabe uma análise para os
fatos. Nenhum espaço à dúvida e à polêmica. Fabrica-se o consenso. Daqui
a 100 anos, o historiador que quiser entender o Brasil de hoje pelas
páginas dos jornais de hoje, não conseguirá responder a uma questão
elementar: como podem governos tão ruins e tão corruptos terem sido
seguidamente eleitos, terem recebido tanto respaldo popular?
Mas
esse historiador também não conseguirá responder a outra pergunta: como
pode um governo democrático e popular, diante do tratamento parcial e
não raro injusto que recebe dos meios, não ter tomado medidas concretas
para democratizar ou, no mínimo, tornar mais plural o sistema de
comunicação do país?
Os princípios para regulamentar
democraticamente as comunicações no Brasil estão fixados na
Constituição. Basta obedecê-los. A Constituição diz que uma concessão de
rádio ou TV não é uma mera licença para alguém fazer o que bem entender
com o espectro lhe concedido, mas antes deverá privilegiar programas
culturais e educativos, respeitar valores éticos da família, promover a
produção independente e a regionalização da programação. A Constituição
diz que deverá haver espaço para transmissão tanto de canais comerciais,
quanto de público-estatais e públicos não-estatais. A Constituição
também diz que os meios não podem ser objeto de monopólio ou oligopólio,
direta ou indiretamente. A Constituição diz, claramente, que nenhuma
lei "conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade
de informação jornalística".
Logo, qualquer regulamentação não
poderá também ferir este princípio, com as ressalvas estabelecidas no
seu artº 5º, dentre estas (item IV): "é livre a manifestação do
pensamento, vedado o anonimato". Isto vale também para a internet...
A
Constituição é muito clara, no seu artigo 222, § 3º: "Os meios de
comunicação social eletrônica, independentemente da tecnologia utilizada
para a prestação do serviço, deverão observar os princípios enunciados
no art. 221, na forma de lei específica, que também garantirá a
prioridades de profissionais brasileiros na execução de produções
nacionais".
A Constituição, pois, em especial o seu artigo 221,
será aplicada não apenas à rádio e televisão abertas, mas também à
televisão por assinatura, à internet e talvez até mesmo, ao menos em
alguns casos, às plataformas móveis. Mas dois anos depois de o
ex-ministro Franklin Martins ter anunciado que legaria ao atual governo
um ante-projeto de regulamentação, continua faltando a "lei específica".
Até quando? Dezembro de 2014?
Carta Maior