Regular a mídia é vital para torná-la melhor, e falar em ‘censura’ é cinismo paralisador.
E eis que o mundo todo discute os limites da mídia.
A discussão mais rica se dá no Reino Unido. O juiz Brian Leveson fez
recomendações depois de ficar mais de um ano ouvindo pessoas de alguma
forma envolvidas com a mídia. Políticos, jornalistas, donos de empresas
de jornalismo, celebridades cuja privacidade desapareceu, cidadãos
comuns cuja vida a imprensa transformou num inferno – Leveson teve
material para publicar um relatório de 2 000 páginas, divulgado esta
semana.
A recomendação principal: a formação de um órgão regulamentador
independente. A auto-regulamentação foi um fracasso, e as provas disso
estão no comportamento da própria mídia britânica.
Para ficar num só caso. A ex-rainha dos tabloides, Rebekah Brooks, a
queridinha de Rupert Murdoch, está encrencadíssima na justiça britânica.
Rebekah está sendo processada sob duas acusações: a) esconder provas no
caso de invasão de caixas postais; b) subornar policiais.
Fiscais não se auto-fiscalizam. Exclamação.
Dias depois de divulgado o relatório, o premiê David Cameron se reuniu com editores de jornais.
Cameron, basicamente, disse a eles que se mexam. Se têm alguma proposta a fazer, eis a hora, porque “o relógio está correndo”.
Cameron deixou claro seu apoio à essência das recomendações de Leveson.
1) A independência do novo órgão regulador em relação às empresas de
jornalismo. A independência deve ser estendida, naturalmente, a outros
centros de poder. O órgão não pode estar sob a tutela nem do Parlamento e
nem do governo. Mas de novo: também não pode estar sob o controle das
empresas de mídia.
2) Multas na “casa do milhão de libras”, quando for o caso.
3) Retificações rápidas e em lugar de grande destaque.
É mais ou menos o que se tem na Dinamarca, conforme já escrevi neste
Diário. As reparações são feitas na primeira página dos jornais.
A opinião pública britânica apoia maciçamente o Relatório Leveson. Os
ingleses já estavam enojados dos excessos da mídia. Cameron esboçou
fazer reparos a Leveson e a voz rouca das ruas se levantou: o senhor tem
que defender o povo da mídia, e não a mídia do povo. Cameron então
deixou claro que está com Leveson.
No Brasil, vigora a auto-regulamentação.
Funciona?
As próprias empresas colocam freios? Discutem, debatem, prestam
contas para a sociedade? Num caso particularmente rumoroso, um repórter
tentou invadir o quarto de um político em Brasília. Pode? Não pode? O
assunto foi ao menos discutido pela mídia, ainda que fosse para aprovar a
conduta do repórter e da publicação?
Liberdade de expressão não é algo que possa ser invocado para garantir que a mídia esteja acima da sociedade – e da lei.
Um juiz americano, numa comparação que ficaria célebre, escreveu que
alguém que gritasse fogo num ambiente lotado e fechado não poderia
depois invocar a liberdade de expressão para escapar das consequências
da tragédia que possivelmente provocaria.
Depois de ver o debate britânico, é lastimável ouvir platitudes como
as pronunciadas – sob ampla cobertura – dias atrás pelo juiz Ayres
Britto.
Britto, que acaba de se aposentar do STF aos 70 anos, fez a defesa da
liberdade de imprensa, mas com uma superficialidade que é chocante,
primária, infantil quando contrastada com a mesma defesa da liberdade de
imprensa feita pelo seu colega britânico Brian Leveson. “É um direito
pleno”, afirmou ele.
Sob Pinochet, ou mesmo sob Geisel, Britto mereceria aplausos. Mas,
numa democracia em que uma imprensa livre é um fato da vida, eis uma
frase superiormente tola, e que esconde a real pergunta: qual o padrão
ético da mídia tradicional brasileira, se é que existe algum?
No Reino Unido, Leveson não caiu na falácia de que liberdade de imprensa significa licença para matar. A sociedade tem que ser protegida dos excessos da mídia. Ou então a mídia presta um formidável desserviço ao interesse público.
O que leva Britto a fugir do real debate – não a liberdade de
imprensa, a favor da qual somos todos, vertebrados e invertebrados, mas a
melhor maneira de evitar seus excessos?
Britto tem uma história complicada na família.
Em 2009, um genro seu foi flagrado numa conversa comprometedora com
um político corrupto. Britto seria um dos juízes no julgamento do
político, e o genro usou seu nome.
O caso virou manchete, justificadamente. E Britto, também justificadamente, disse que não podia responder pelo genro.
Britto teria ficado intimidado?
É uma possibilidade. Ele foi o principal responsável pelo fim da Lei
da Imprensa, editada na era militar, e diz que aquela é sua maior
contribuição ao país. Um instante: ao país? Que Leveson diga
mais ou menos o mesmo na Inglaterra — não fará por modéstia e decoro —
se compreenderia. Ele enfrentou a ira e o poder de Murdoch, por exemplo.
Britto não é Leveson.
Com o fim da ditadura, a Lei da Imprensa já não causava cócegas a
nenhuma empresa jornalística, e também a nenhum jornalista, Era um
cadáver jurídico.
Para lembrar: a Lei da Imprensa vigorava quando Paulo Francis
caluniou diretores da Petrobras. Mas estes, sabendo o quanto ela era
inoperante, foram processar Francis na justiça americana, uma vez que
ele fizera as acusações em solo dos Estados Unidos. Francis ficou
desesperado ao lidar com uma justiça que exigia provas para assassinato
de caráter, e que cobrava pesado pela ausência delas. Morreu disso,
segundo os amigos.
A morte de uma lei já morta trouxe um efeito colateral nocivo à
sociedade. Sumiu, com a Lei da Imprensa, o direito de resposta. O que
significa que a sociedade ficou desprotegida.
Britto se despediu da ativa com esse passivo enorme no currículo, e
repetindo lugares-comuns que não reforçam a imagem da justiça brasileira
e de seus mais elevados expoentes – a despeito do espaço generoso que
os jornais dedicam a seu palavrório oco.
Nenhum comentário:
Postar um comentário