A Comissão da Verdade investiga a possibilidade de que a ditadura
militar tenha arruinado a empresa por causa das ligações entre os donos e
dois antigos presidentes civis.
No apogeu, antes da ditadura militar
O artigo abaixo, publicado no site Com Ciência, é de autoria do jornalista Daniel Leb Sasaki, autor do livro Pouso forçado: a história por trás da destruição da Panair do Brasil pelo regime militar (Editora Record). A Comissão da Verdade investiga formalmente, agora, a possibilidade de a ditadura militar ter levado a Panair à bancarrota, por causa das ligações entre seus donos e dois antigos presidentes, Juscelino Kubitschek e João Goulart.
O 10 de fevereiro é uma data
histórica para a aviação comercial brasileira. Nesse dia, em 1965, as
concessões de linhas aéreas da Panair do Brasil S.A. foram abruptamente
cassadas, por meio de despacho assinado pelo então presidente da
República, marechal Castello Branco, e pelo ministro da Aeronáutica,
brigadeiro Eduardo Gomes, que se basearam em Exposição de Motivos
apresentada pelo brigadeiro Clóvis Travassos, ex-diretor da antiga
Diretoria da Aeronáutica Civil. A determinação, recebida via telegrama,
foi anunciada apenas cinco horas antes da decolagem de um vôo
internacional programado com destino a Frankfurt, Alemanha.
Um sentimento de incredulidade
imediatamente tomou conta de todos. Primeiro, porque a Panair,
concessionária das rotas para a Europa, África e Oriente Médio, era a
mais respeitada e prestigiosa empresa de aviação do país. Com 35 anos de
atividades, significava pioneirismo e qualidade, funcionava
informalmente como consulado brasileiro em quatro continentes e
representava, aos estrangeiros, o domínio e a capacidade técnica do país
no setor aéreo.
Depois, porque o ato, baixado sem
qualquer aviso prévio, deixou a diretoria e os clientes sem saber o que
fazer com os bilhetes já emitidos. Mas a surpresa maior viria à noite:
como soubesse da resolução governamental com antecedência, a Varig,
então operadora de linhas para os Estados Unidos e Japão, tripulou de
imediato um Boeing 707 para realizar, sem solução de continuidade, o vôo
da concorrente cassada. E o avião decolou, ainda que com pequeno
atraso, rumo a países para os quais os pilotos em tese nunca haviam
voado, numa demonstração sem precedentes de eficiência na aviação
comercial.
Tinha início o caso mais rumoroso do
direito empresarial no Brasil. Sacudidos pela brusquidão da medida, os
diretores da Panair se reuniriam com advogados em sessões permanentes,
para tentar tornar sem efeito a cassação, a qual, segundo eles,
contrariava as cláusulas do contrato de concessão de linhas aéreas
celebrado com o Ministério da Aeronáutica, órgão que regulava o setor da
aviação no país. Isso porque em momento algum antes da intervenção a
empresa fora interpelada sobre possíveis irregularidades em suas
operações, passara por perícia ou processo administrativo regular, ou
fora cientificada das intenções das autoridades de cassá-la. Baseados
nesses argumentos, os executivos decidiram impetrar um mandado de
segurança ao Supremo Tribunal Federal, reivindicando a restituição do
direito de operar, e entrar com uma ação por perdas e danos. Com sua
principal fonte de receita parada e o STF em recesso, a companhia entrou
também com um pedido de concordata preventiva na 6a Vara Cível do
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, uma tentativa de resguardar
intacto o patrimônio até que o mandado fosse julgado.
Nesse meio tempo, 5.000 funcionários, espalhados de Lima a Beirute, haviam instantaneamente perdido seu meio de subsistência e estavam em desespero. Acionistas e diretores cobravam respostas, eram ouvidos pelos jornais e amparados pela população. As autoridades, por conta disso, sentiram-se pressionadas a vir a público para justificar a decisão. Alegavam que há algum tempo vinham acompanhando a situação financeira da empresa, que rapidamente se deteriorava. Segundo eles, a crise era tão grave e acelerada, que o colapso da Panair, iminente, não poderia ser evitado mesmo se todo o pesado auxílio econômico destinado à indústria do transporte aéreo, previsto no orçamento do governo, fosse dado à empresa. E acrescentavam: irrecuperável, no futuro a Panair viria a ter problemas para realizar a manutenção em seus aviões, enfrentaria dificuldades em comprar peças de reposição e, por fim, provavelmente provocaria acidentes aéreos fatais.
Paulo de Oliveira Sampaio – que
durante 16 anos administrou a companhia como diretor-presidente,
transformando-a de subsidiária integral da Pan American World Airways em
empresa de bandeira do Brasil completamente nacional – refutou as
acusações. Dizia que além de todos os compromissos estarem em dia ou
negociados, incluindo a folha de pagamento dos funcionários, os débitos
reclamados pela União, contraídos com o Banco do Brasil, não eram
exclusividade da concessionária cassada. De acordo com o diretor, as
dívidas das quatro grandes empresas nacionais eram de 23 bilhões e 892
milhões de cruzeiros, dos quais 4 bilhões e 400 milhões correspondiam à
Panair.
As origens desse débito remontavam a
1961, quando o Congresso aprovou um projeto de lei que fixava a
subvenção para reequipamento em 3 bilhões e 200 milhões de cruzeiros (10
milhões de dólares, a uma taxa de câmbio de 320 cruzeiros por dólar).
Na época, a aviação comercial era subvencionada no Brasil com base na
quilometragem voada. A medida, inicialmente, deu fôlego às companhias.
Contudo, por conta da crise político-econômica que se instalou no país, o
dólar subiu até alcançar a taxa de câmbio de Cr$ 1.850, em que se
encontrava em fevereiro de 1965. A desvalorização cambial, somada à
estagnação do valor das subvenções, terminou por reduzir o pacote a um
milhão e meio de dólares, aproximando o setor do caos. Nem
financiamentos especiais pela Carteira de Câmbio do Banco do Brasil,
autorizados pelo governo, continham os gastos das aéreas. E, como não
havia meios de atualizar os valores subvencionados, decidiu-se, de comum
acordo, em 1963, que o BB não exigiria o resgate dos débitos até que
uma outra resolução fosse encontrada.
Isso era de amplo conhecimento das
autoridades, mas nenhuma explicação foi suficiente. Em 15 de fevereiro
de 1965, apenas três dias após o pedido de concordata preventiva ser
impetrado, o juiz de plantão, Mário Rebello de Mendonça Filho,
indeferiu, alegando em seu despacho apenas que, sem as linhas, a Panair
do Brasil não teria meios de solver compromissos futuros e,
eventualmente, iria à falência. Portanto, que estava desde já falida.
Uma eutanásia jurídica. A decisão do magistrado, baseada em vaga
exposição de motivos fornecida pela aeronáutica, liquidou a segunda
maior empresa privada do país sem que houvesse qualquer dívida vencida
exigível, títulos levados a protesto por parte de credores estatais e
privados, ou ações trabalhistas na Justiça. A União, a seguir, entrou em
cena mais uma vez. Na sentença que decretou a falência, o Banco do
Brasil resolveu contrariar o acordo de moratória e, sem prestar
explicações, protestou exclusivamente os títulos da companhia, mantendo
intacta a situação das concorrentes – algumas das quais, devedoras de
quantias superiores.
Hoje em dia, empresas aéreas, de
maior ou menor porte, quebram a toda hora. Mas, na ocasião, o fechamento
da Panair foi um evento tão inusitado e grandioso, que repercutiu por
todo o mundo como escândalo. Estranhava-se a ausência, por parte do
juiz, de diligência para averiguar se a empresa dispunha de outras
fontes de renda. E elas eram várias. O grupo controlava a Companhia
Eletromecânica Celma, que era – e ainda é – o mais avançado parque de
revisão de motores a pistão e a jato do Hemisfério Sul, contratado não
só pela maior parte das empresas aéreas nacionais, mas por 12 congêneres
estrangeiras de peso e, até mesmo, pela Força Aérea Brasileira, que
revisava ali seus motores. A Panair obtinha receita também de seu
Departamento de Comunicação e Proteção ao Vôo, única infra-estrutura de
telecomunicações aeronáuticas do país, responsável pela segurança e
cobertura de vôo de toda aeronave, de qualquer nacionalidade, que
sobrevoasse o Atlântico Sul. Nos hangares da companhia, serviços de
manutenção garantiam renda adicional significativa.
Além disso, os donos da Panair, Mário
Wallace Simonsen e Celso da Rocha Miranda, eram ricos, tinham boas
relações com instituições financeiras e gozavam de grande prestígio e
influência. O paulista Simonsen comandava mais de 40 empresas poderosas,
entre elas a Comal e a Wasin S.A., que compravam e exportavam café para
o mundo todo numa época em que o grão ainda correspondia a dois terços
da pauta brasileira. Tinha capital majoritário na influente TV
Excelsior, um dos canais de televisão mais promissores da época. O
sócio, Celso da Rocha Miranda, do Rio de Janeiro, atuava principalmente
no ramo de seguros, com firmas como a Companhia Internacional de Seguros
e a Ajax Nacional de Seguros, as maiores do setor, que atendiam
clientes como o Banco do Brasil e as Docas de Santos. Também trabalhava
com aerolevantamento, prospecção e com a indústria imobiliária.
Era estranho que, com esse grupo
forte por trás, a Panair subitamente tinha ido à bancarrota. Mas
justamente aí estava a raiz do problema. Esses homens eram muito
próximos ao ex-presidente Juscelino Kubitschek e pretendiam financiar
sua candidatura nas eleições seguintes. Legalistas, tinham ficado
marcados pelos militares por causa do apoio à posse de João Goulart três
anos antes. Uma a uma, suas empresas passaram a sofrer intervenções ou
sérias restrições de crédito.
Os vôos da Panair foram passados para a Varig
Na Panair, o desemprego em massa resultou em graves problemas sociais. Seus funcionários representavam, na economia dos anos 1960, cerca de 0,2% da força de trabalho qualificada do Brasil. Sem salário, tentaram de todas as formas sobreviver, inclusive recebendo doações de mantimentos em hangares fechados. Com poucas perspectivas de recolocação no mercado a curto prazo, havia uma única esperança para a maioria deles: as indenizações. Nos termos do Art. 486 da Consolidação das Leis do Trabalho, o pagamento ficava a cargo da União, já que a cessação das atividades da concessionária ocorreu por ato do poder público concedente. O governo, no entanto, nunca pagou. Quem assumiu os créditos foi a empresa falida, que, sem nenhuma obrigação de fazê-lo, pagou a todos, em dobro e com seu próprio caixa em apenas dois anos – outro recorde digno de nota na história falimentar do Brasil.
Na Panair, o desemprego em massa resultou em graves problemas sociais. Seus funcionários representavam, na economia dos anos 1960, cerca de 0,2% da força de trabalho qualificada do Brasil. Sem salário, tentaram de todas as formas sobreviver, inclusive recebendo doações de mantimentos em hangares fechados. Com poucas perspectivas de recolocação no mercado a curto prazo, havia uma única esperança para a maioria deles: as indenizações. Nos termos do Art. 486 da Consolidação das Leis do Trabalho, o pagamento ficava a cargo da União, já que a cessação das atividades da concessionária ocorreu por ato do poder público concedente. O governo, no entanto, nunca pagou. Quem assumiu os créditos foi a empresa falida, que, sem nenhuma obrigação de fazê-lo, pagou a todos, em dobro e com seu próprio caixa em apenas dois anos – outro recorde digno de nota na história falimentar do Brasil.
O processo de falência foi
desastroso. Mesmo respaldados por jurisprudência, os representantes da
empresa viam-se sempre imobilizados em todas as tentativas de se
defender e ao patrimônio das intervenções do governo militar. Enquanto
sofriam perseguições que incluíam acusações fabricadas – posteriormente,
repelidas pela Justiça –, laudos periciais adulterados e
desentranhamentos de promoções nos autos que os eximiam de culpa, o
Banco do Brasil, por meio de seus representantes, dilapidou quase
inteiramente os bens da Panair – em especial, a sua rede de agências e
representações no exterior. Um determinado preposto da instituição, além
de deixar de prestar contas das operações, transferiu para a Varig,
gratuitamente, a maior parte dos contratos de aluguéis das lojas da
ex-concorrente, com os bens móveis incluídos.
Paralelamente, por meio de decretos, a
União desapropriou, a preços fantasiosos, a Celma e o Departamento de
Comunicações, suas ações e equipamentos. Os aviões DC-8 e Caravelle
foram, por pressão, arrendados à Varig e Cruzeiro do Sul,
respectivamente, também a preços abaixo da realidade do mercado
internacional. E quando os advogados da massa falida decidiram solicitar
a atualização dos valores, tiveram como resposta a edição, a toque de
caixa, do Decreto-lei n° 496, de março de 1969, que desapropriou as
aeronaves, peças e sobressalentes.
O disparo de leis extravagantes
tornou-se a principal arma da União para legitimar o extermínio da
tradicional empresa de aviação, já que, técnica e financeiramente, os
autos comprovavam na ponta do lápis a inexistência de justificativas.
Com o tempo, também essa estratégia falhou. Isso porque, ao confiscar os
aviões, os militares, na verdade, automaticamente levantaram a falência
imposta. O governo dizia-se credor de NCr$ 70.931.960,41 (cruzeiros
novos, moeda da época). Com os bens desapropriados orçados em NCr$
79.684.892,43, o juízo falimentar reconheceu a dívida como paga e
excluiu o Estado do rol de credores.
A Panair do Brasil, no chão havia
quatro anos, surpreendentemente ainda dispunha de dinheiro para pagar,
integralmente e à vista, o restante dos créditos. Assim, no dia 2 de
junho de 1969 entrou com um pedido irrecusável de transformação da
falência em concordata suspensiva, numa nova tentativa de retornar às
atividades. Irrecusável, pois, nos termos da lei, o pleito era deferido
caso o falido se propusesse a pagar 35% dos débitos à vista ou 50% no
prazo máximo de dois anos. Em resposta, a Procuradoria Geral da União
ajuizou – um dia antes da audiência que decidiria sobre o deferimento da
concordata – um executivo fiscal instruído com uma nova certidão de
inscrição de dívida ativa, para cobrar da empresa outros NCr$
112.547.499,95 sobre o crédito que já havia sido extinto por decisão
passada. No dia 3 de julho, o governo baixou o Decreto-lei n° 669, que
retirava especificamente das empresas de transporte aéreo o benefício da
concordata. A única aérea na situação era a Panair.
Essa nova peça de legislação,
promulgada depois da impetração do pedido e antes do julgamento, foi
veiculada pela imprensa como notícia antes mesmo da oficialização no
Diário Oficial e utilizada pelo juiz da 6a Vara Cível para denegar o
pleito. Por conseguinte, a falência foi mantida e os bens remanescentes
postos a leilão no prazo recorde de 90 dias. O produto da venda, pago ao
Estado como cobertura da nova dívida.
Durante 15 anos, a falida e a União
brigaram nos tribunais por essa questão. Por fim, em dezembro de 1984, o
Supremo deu ganho de causa à Panair do Brasil e condenou o governo a
acertar as contas. Era a abertura política assegurando a independência
da Justiça. Mas, àquela altura, havia pouco a comemorar. A antiga
empresa estava sepultada, seu prestígio consumido e seus feitos
esquecidos ou usurpados. De toda forma, sem a perseguição implacável do
Estado, a Panair conseguiu levantar a falência em maio de 1995 e, desde
então, luta por uma reparação moral e material por meio de uma série de
ações judiciais. Algo ainda sobrevive. O ronco de seus motores se faz
ouvir, seja na revogação do Decreto-lei 669 em fevereiro de 2005, seja
na confraternização que os antigos funcionários realizam, todo ano, na
data de aniversário da empresa para homenageá-la. Como um comandante
certa vez disse, “a Panair era do Brasil no nome e dos brasileiros no coração".
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