Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o Outro General da Casa".
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o Outro General da Casa".
Flagrado numa sucessão inesquecível de erros factuais no livro "Dirceu - A Biografia", o jornalista Otávio Cabral promete através da Folha de S. Paulo que vai fazer correções na próxima edição.
Mas é difícil escapar da pergunta. Se o
livro não tivesse erros em tamanha quantidade seria uma obra aceitável
como um produto cultural, destinado a enriquecer o conhecimento dos
brasileiros e o debate de nosso tempo?
Essa é a questão. Erros acontecem em toda atividade humana: na medicina, na engenharia, no direito e no jornalismo.
Mas erros em excesso não são detalhes. Espelham desconhecimento.
Quem erra muito sabe pouco – aprende-se com uma criança em
alfabetização ou com um adulto que tenta falar daquilo que não entende.
Os erros de “Dirceu” ajudam a entender o livro. Otavio Cabral
escreveu uma obra onde os fatos não têm a importância que deveriam ter
numa obra que pretende se enquadrar no gênero das biografias. Aqui, eles
são descartáveis. Podem ser trocados, descartados, substituídos. Não
têm valor em si. Servem a um propósito, que é sustentar a visão de
Cabral sobre Dirceu.
Além de fatos quimicamente falsos, há outros, em estado vaporoso.
Cabral não sabe são verdadeiros, ou se não passam de puros boatos. Mas
divulga tudo mesmo assim, sem esconder a vontade de fazer carga – de
qualquer maneira, por todo lado.
Como exercício de terrorismo moral, o livro é uma exibição de má pontaria.
O problema real é sua falta de conhecimento sobre personagem e os
diversos contextos da vida de José Dirceu. Você atravessa mais 360
páginas e não consegue entender as causas da influência de Dirceu nas
últimas décadas da política brasileira. Não se trata de aprovar ou não o
que ele faz.
Trata-se de saber o que ele fez, quando, onde, por quê.
O autor não tem conhecimento real sobre a ditadura militar que
marcou a geração de Dirceu e de tantos brasileiros. Não faz ideia de
como era a vida no país daquele tempo, limitando-se a produzir
julgamentos ideológicos. Também lhe faltam elementos importantes para
entender o que foi o processo de democratização e o processo político
que levou Lula e o próprio Dirceu ao Planalto, em 2003.
Já na orelha o livro faz uma afirmação absurda: “em 2003, pela via
democrática que não ajudara a construir, (Dirceu) alcançaria o Palácio,
ministro de um presidente eleito pela esperança.”
Considerando métodos honestos de discussão, não há como sustentar a
noção de que Dirceu “não ajudou” a construir a vida democrática no
país.
Maior liderança estudantil dos anos 60, exilado, guerrilheiro, no
final da década de 70 Dirceu atuou ainda na clandestinidade junto a
movimentos que resistiam a ditadura, pediam anistia aos presos políticos
e foi um dos articuladores reconhecidos da campanha das Diretas-Já.
Levando em conta o tamanho reduzido do PT naquele início da década, seu
papel como organizador da ala mais combativa do movimento pelas diretas
foi equivalente, todas as proporções guardadas, à atuação de um
governador como o tucano Franco Montoro.
Sem deixar de ser amigo da ditadura comunista de Fidel Castro, anos
depois Dirceu destacou-se no esforço para aproximar Lula e o PT de
forças políticas moderadas, capazes de garantir uma base mais ampla para
o governo. Com apoio de Lula foi o principal responsável pela
elaboração de uma política de alianças que ajudou a construir o bloco
político que permitiu a vitória do PT nas eleições de 2002 e mesmo em
2006 e 2010, quando se encontrava fora do governo. Os principais
adversários de Dirceu, durante muitos anos, foram vozes da ala esquerda
do PT, que denunciavam sua “aliança com a burguesia”.
Se estivesse em busca do Dirceu real, e não de um mito adequado ao
conservadorismo primitivo que marca a formação política do país, Octávio
Cabral teria registrado sua atuação no Congresso e na Casa Civil para
facilitar aproximações com empresários, negociando acordos e desatando
nós – e sempre tomando porradas internas por isso.
Durante a campanha de 2002, Dirceu foi aos Estados Unidos para
estabelecer relações com o governo do presidente republicano George W.
Bush. Naquele momento, a candidatura Lula era alvo de uma campanha
reacionária, em Washington, para apresentá-lo como uma combinação de
Hugo Chávez, alvo de um golpe de Estado no início daquele ano, com apoio
dos EUA, e de Fidel Castro, que a Casa Branca tentou derrubar por meio
século. Dirceu retornou como interlocutor legítimo do novo governo junto
ao Departamento de Estado e da embaixadora Donna Hrinak.
O acadêmico Mathias Spektor assinala que naquele período Brasil e
Estados Unidos atingiram um padrão de bom entendimento poucas vezes
conseguido ao longo da historia diplomática dos dois países – e jamais
reconhecido pela imprensa brasileira. Seria absurdo ignorar que Dirceu
teve um papel pioneiro na construção desta situação.
Sem acesso a Dirceu nem a fontes dispostas a ajudá-lo a formar uma
visão consistente sobre 50 anos dedicados à política, o livro
contenta-se com entrevistas já publicadas e envelhecidas. Também dá
credito a relatos de segunda mão e depoimentos de velhos camaradas que
se tornaram adversários e até inimigos de Dirceu, método ideal para
produzir uma obra que transpira raiva e ressentimento.
Num exercício de psicanálise à distancia, Cabral escreve que, filho
de um pequeno empresário conservador, em 1964 Dirceu apoiava o governo
Jango “mais para se opor ao pai do que por ideologia.”
Falando sobre 1968, o livro enxerga a ação da ditadura contra os
estudantes de um ponto de vista que poucos observadores já tiveram
enunciaram em público. Comentando o sucesso de uma das ações do líder
estudantil Dirceu, a ocupação da Maria Antônia, Otávio Cabral escreve
que isso ocorreu por causa da “falta de repressão.”
Então é assim. O leitor precisava chegar a 2013 para Octávio Cabral dizer que em 1968 havia “falta de repressão” no Brasil.
Como sabem até alunos de curso fundamental, o regime militar cuidou
de resolver essa situação poucos meses depois, quando baixou o AI-5.
Preso naquele ano, no fim do Congresso de Ibiúna, Dirceu planejava
fugir da prisão porque tinha “medo da tortura,” escreve Cabral, o
corajoso.
Pelo método da banalização do mal, o livro vai chegando aonde
pretende. Ameniza a brutalidade da ditadura, num esforço necessário para
reduzir o valor de quem ousou mobilizar-se contra ela. Ao falar em
“medo da tortura” o livro assume um ponto de vista conhecido e
lamentável.
A prática da tortura, no mundo inteiro, tem um discurso estabelecido para tentar justificar-se.
Situados na posição confortável de um interrogatório, torturadores
profissionais preferem explicar confissões obtidas por uma suposta falta
de caráter de suas vítimas, pelo “medo”, pela “covardia,” e não pela
ação dos choques elétricos no pau de arara. Numa tentativa de explicar
um comportamento desumano, querem fazer seus contemporâneos acreditarem
que, antes de vencer suas vítimas pela dor física, haviam sido capazes
de derrotá-las no plano moral. Conforme esta fabricação imoral, a
covardia das vítimas era mais importante do que a dor que efetivamente
sentiam.
Lançado nas semanas anteriores ao julgamento dos recursos da ação
penal 470, era de se imaginar, com otimismo, que o autor tivesse a
ambição de trazer novidades nesse terreno. Mas não.
O livro limita-se a fazer coro com denúncias conhecidas,
aproveitando a ocasião para tentar chegar às listas de mais vendidos.
Levando a má investigação policial para o campo jornalismo, "Dirceu" com
aspas deduz, infere, quer tornar plausível a visão de que Dirceu sem
aspas era o chefe do esquema – mas não tem provas nem fatos novos.
Octavio Cabral entrevistou José Antônio Oliveira Lima, advogado de
Dirceu, mas não teve curiosidade de entender os argumentos de uma defesa
que, como se sabe, obteve um apertado placar de 5 a 4 numa deliberação
importante, sem falar numa condenação ampliada porque o presidente do
STF Joaquim Barbosa cometeu um erro de datas na hora em que definia a
pena.
Por oposição, a leitura de “Dirceu” me fez pensar em “Hitler”, de
Ian Kershaw. Uma das melhores biografias jamais escritas, “Hitler”
contém uma lição bem sucedida para um exercício difícil: narrar a
história de vida de uma pessoa pela qual o autor não possui um milímetro
de simpatia. Trabalhando quatro décadas depois da morte de Hitler,
Kershaw escreveu um total de 1.076 páginas. Seu trabalho é impecável.
Não deixa nenhum fato de lado, não perde o rumo nem confunde a realidade
com seus argumentos nem afirma o que não pode sustentar. É um livro
repleto de ensinamentos universais de política, de história, de reações
humanas.
Aplica-se à cultura aquela verdade que Hanna Arendt descobriu para a Justiça.
Mesmo um nazista, como Adolf Eichmann, tinha direito a um julgamento justo.
Por mais errada que seja sua visão de José Dirceu, Octávio Cabral
não tinha o direito de lhe dar um tratamento abaixo da dignidade.
Isto É
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