terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Marco Aurélio e a questão de caráter

mello13
10 de fevereiro de 2015

por Paulo Moreira Leite

Reação de ministro do STF aos abusos da Lava Jato lembra que não basta erudição nem amigos influentes para se fazer um bom juiz. É preciso coragem

O ministro Marco Aurélio Mello deu uma aula de Justiça no fim de semana. Não. Ele não fez nenhuma ginástica erudita nem anunciou uma nova jurisprudência que o cidadão comum não entende. Conhecido pelo espírito bem-humorado, também não fez ironias.

Marco Aurélio mostrou que o Rei está nu: apontou o dedo para uma situação que muitos enxergam mas, por interesse político, covardia ou conforto pessoal, preferem fingir que não está vendo — os abusos da Operação Lava Jato contra as regras do Estado Democrático de Direito.

“Com 25 anos de Supremo, eu nunca tinha visto nada parecido. E as normas continuam as mesmas”, disse.

O ministro se referia a “condução coercitiva” de João Vaccari Neto, responsável pelas finanças do Partido dos Trabalhadores, para prestar um depoimento a Polícia Federal — quando a boa regra democrática determina que cidadão em sua condição tenham a oportunidade de comparecer, voluntariamente, perante autoridades policiais, para prestar esclarecimentos necessários. Você lembra do espetáculo produzido: a TV mostrou imagens grotescas de policiais pulando o muro da casa de Vaccari, cena destinada a criar um espetáculo vergonhoso de faroeste para os telejornais.

A finalidade destas cenas nós sabemos: ajudam a criminalizar os acusados, permitem que sejam vistos como cidadãos condenáveis, capazes de atos criminosos — sem um fiapo de prova. Essa é a função do espetáculo.

Marco Aurélio deu uma demonstração semelhante de caráter em 2012, durante o julgamento da AP 470. Inconformado diante das seguidas demonstrações de agressividade de Joaquim Barbosa, que tinham a função de intimidar os colegas de plenário, ele rebateu: “Não admito que Vossa Excelência suponha que todos aqui sejam salafrários e só Vossa Excelência seja vestal.” O jogo era o mesmo: ao ficar em silêncio diante do “espetáculo a flor da pele, intolerância e desqualificação dos colegas”, como descreveu o Estado de S. Paulo em editorial, os ministros ajudavam a montar o teatro destinado a justificar medidas extremas, “exemplares”, como se dizia, típicas daqueles tristes momentos em que a Justiça se assemelha a uma noite no circo.

Imagine que o mais conhecido erro judiciário da história universal, o Caso Dreyfus, envolvendo um oficial do Exército francês colocado a ferros sob o sol inclemente da Guiana sob a falsa acusação de vender segredos militares para o Exército alemão, só pode ser desmascarado graças a uma atitude semelhante. O coronel George Picquart, que havia sido professor de Alfred Dreyfus no Colégio Militar, teve acesso aos arquivos do serviço secreto que demonstravam que as provas contra o capitão eram pura falsificação, destinadas a esconder o verdadeiro traidor. A partir daí, Picquart passou a travar uma luta para rever o caso, enfrentando as reações que se pode imaginar. Foi desterrado para a Tunisia, no Norte da África, e também foi processado. Quando o segundo julgamento de Dreyfus estava em curso, Picquart aguardava sua chance num tribunal militar.



O que se aprende, aqui, é uma lição bastante simples. Nossa sociedade do espetáculo não precisa de heróis nem de justiceiros. Mas necessita de autoridades que tenham a coragem de cumprir seus deveres, como guardiões das verdades duras e os direitos de pedra que estão na Constituição — mas precisam ser garantidos, dia após dia, por homens e mulheres de carne-e-osso. Sem eles, o Estado de Democrático de Direito é um enfeite pendurado na parede.

Essa é a lição.



Brasil 247

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