quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Uma ofensa a Itamar

Os criadores do programa do PSDB, que foi ao ar ontem, apropriaram-se, sem qualquer constrangimento, de êxitos do governo do grande mineiro, atribuindo-os ao PSDB. A subtração não foi apenas a do Plano Real. Não tiveram os autores do programa nenhum pudor de atribuir “ao governo do PSDB”, a introdução dos medicamentos genéricos, uma criação do ministro Jamil Haddad.

Com seu ceticismo habitual, Tancredo Neves dizia que os melhores cemitérios do mundo são os brasileiros. Uma vez aqui sepultado, o morto, quando muito, é lembrado na missa do sétimo dia. E se houver missa de ano, só estarão presentes alguns familiares e os amigos pessoais sobreviventes.

Com Itamar Franco, que teve o corpo cremado, o esquecimento parece ter sido mais rápido. Os criadores do programa do PSDB, que foi ao ar ontem, apropriaram-se, sem qualquer constrangimento, de êxitos do governo do grande mineiro, atribuindo-os ao PSDB. O governo de Itamar foi suprapartidário. Foi tanto do PSDB quanto do PMDB e do PFL, do PDT e do PT - se consideramos a presença de Luíza Erundina no comando da Secretaria de Administração. Exercido sem qualquer vinculação partidária, foi um dos raros momentos da História Brasileira em que houve admirável consenso, com a única restrição do PT. O Partido dos Trabalhadores, em sua disposição de disputar a Presidência, talvez não tivesse alternativa, a não ser buscar o próprio espaço. Os demais compreenderam a necessidade de ajudar o Presidente a administrar cautelosamente o intervalo, antes das eleições presidenciais de 1994.

Quanto à apropriação do Plano Real por parte de Fernando Henrique, já estamos acostumados a esse ilícito ético. Se formos admitir que o Plano é do PSDB, porque Fernando Henrique era ministro da Fazenda quando ele foi elaborado, talvez fosse melhor atribuí-lo ao financista alemão Hjalmar Schacht, que interrompeu a voragem hiperinflacionária da Alemanha, em novembro de 1923, ao criar o “Rettenmark”, cuja formula serviu de modelo ao Real. Não fosse a coragem de Itamar - em assumir o Plano depois de revisá-lo minuciosamente, como bom matemático que foi - e não teríamos debelado a inflação.

Quem deu credibilidade popular ao real foi a autoridade política e ética de Itamar Franco. Mas a subtração não foi apenas a do Plano Real. Não tiveram os autores do programa nenhum pudor de atribuir “ao governo do PSDB”, a introdução dos medicamentos genéricos, uma criação do Ministro Jamil Haddad. Outra corajosa decisão de Itamar, relutantemente adotada pela equipe econômica, e sugerida pelo economista Dércio Garcia Munhoz, foi a de transferir para o Ministério da Saúde, que já não dispunha de recursos mínimos, os elevados lucros do Banco Central naquele exercício.

O grande êxito de Itamar, no entanto, foi de natureza ética. O Presidente não titubeou, um só momento, em corrigir imediatamente os desvios identificados. Demitiu, sumariamente, o Ministro Eliseu Resende, seu amigo pessoal, quando ele não soube explicar o pagamento de diárias de hotel por uma empreiteira, e mandou que outro amigo e Ministro da Casa Civil, Henrique Hargreaves, se licenciasse do cargo e fosse responder a uma comissão parlamentar de inquérito. Inocentado pela CPI, Hargreaves retornou ao seu lugar no Planalto.

Itamar criou uma Comissão de Investigações para apurar as denúncias de corrupção no poder executivo, constituída de pessoas estranhas ao governo, e de indiscutível idoneidade moral, como os advogados Modesto Carvalhosa e Cândido Mendes, entre outras. No final de seu mandato, Itamar entregou a Fernando Henrique, no ato da transmissão do cargo, um relatório parcial da equipe. Quando todos esperavam que o novo presidente mantivesse a Comissão, necessária à transparência do governo, ele dissolveu-a como um de seus primeiros atos – e não tomou conhecimento do relatório.

Poderiam ter respeitado o grande morto.


Mauro Santayana é colunista político do Jornal do Brasil, diário de que foi correspondente na Europa (1968 a 1973). Foi redator-secretário da Ultima Hora (1959), e trabalhou nos principais jornais brasileiros, entre eles, a Folha de S. Paulo (1976-82), de que foi colunista político e correspondente na Península Ibérica e na África do Norte.

Carta Maior

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