Malogro do 11 de abril de 2002 marca uma novidade na América Latina. Nunca uma articulação envolvendo classes dominantes, Igreja Católica, mídia e Estados Unidos fracassara por aqui. Hoje, com a popularidede acima de 60%, Chávez é o favorito na disputa presidencial. Mas um drama pessoal ameaça se transformar em fator político determinante: a gravidade de seu quadro de saúde. Se a situação se agravar, não há substituto à altura. Não há uma Dilma do Chávez. O artigo é de Gilberto Maringoni.
Gilberto Maringoni
Estive pela primeira vez na Venezuela três semanas após o fracassado golpe de 11 de abril de 2002. O motivo foi um convite do jornalista Raimundo Pereira, um dos pais do jornalismo político moderno no país e editor da revista Reportagem. “Você não quer passar uns dias em Caracas, saber como foi essa volta do Chávez ao poder e fazer uma matéria extensa?”, perguntou ele em uma curta e objetiva reunião que tivemos dois dias após o fim da aventura de Pedro Carmona e seus aliados.
Aceitei e fiz as malas sem saber muito do país, além da generalidade superficial de quem lê o noticiário da mídia brasileira.
Dias antes, Arnaldo Jabor havia saudado o golpe. Aparecera com aquele ar de amigo esperto nas telas da Globo, segurando uma taça de vinho numa mão e uma banana na outra. “Vamos brindar o fim de mais uma república bananeira”, ironizou, antes de fazer biquinho para saborear a bebida.
O Estado de S. Paulo foi mais direto. No editorial de sábado, 13 de abril tascou o seguinte: “O que ocorreu na Venezuela não foi um simples golpe de Estado que tirou do poder o coronel Hugo Chávez. Foi - assim como ocorreu no Brasil em 1964 - uma reação cívica a um governo que, eleito em pleito livre, em consequência do cansaço popular com partidos que já não tinham representação e se excediam na corrupção, se esmerou, uma vez no poder, em eliminar progressivamente todo e qualquer vestígio daquilo que se poderia chamar de institucionalidade democrática”.
Clima pesado
Em Caracas, o clima era mais pesado. Os jornais e os noticiários de TV praticamente diziam que Chávez era o responsável pelo golpe. Havia denúncias e mais denúncias, anúncios catastróficos sobre a reforma agrária e um rosário de torpedos verbais contra o presidente em todos os horários e canais.
Mas os atendentes, camareiras, garçons, camelôs, balconistas, mendigos, cobradores de ônibus e lideranças de bairros estavam exultantes. “Intentaran sacar el presidente porque él és nuestro”, me falou baixinho a copeira do hotel onde fiquei.
A sensação nas ruas era semelhante. As marchas da oposição exibiam loiras oxigenadas, com blusas de oncinha, calça de couro e salto alto. Também se viam rapazes, marombados por intermináveis horas nas academias, descendo de Pajeros e Cherokees. A ala dos governistas era composta por mulatos, mestiços, desdentados e malvestidos. Visualmente, o panorama era de ricos contra pobres, quase uma imagem de manual de luta de classes.
O malogro
O malogro da ação se deu por três fatores: 1. Os golpistas não conseguiram maioria nas forças armadas. A cúpula queria a saída de Chávez, mas a média oficialidade e os cabos e soldados não embarcaram na intentona. Na própria madrugada do dia 12, enquanto o presidente era detido, várias guarnições importantes começaram a se rebelar; 2. A formidável reação popular evidenciou a rarefeita legitimidade da nova situação e 3. O novo governo conheceu um acachapante isolamento internacional.
O fim da trapalhada ficará marcado como uma das mais belas e emocionantes páginas das lutas sociais de todo o mundo. O figurino continental desandou. Puxadas de tapetes com sólidos apoios entre o empresariado, a Igreja Católica, os militares e a embaixada dos Estados Unidos nunca foram revertidos de forma tão espetacular
A volta de Hugo Chávez ao palácio de Miraflores, rodeado por centenas de milhares de apoiadores, tornou-se também objeto de disputa entre a direita e a esquerda. Qual o real significado das movimentações daqueles dias? A oposição valia-se de um argumento semelhante ao do jornal O Estado de S. Paulo: não houve golpe, mas um levante cívico militar contra a baderna. Golpista seria Chávez, que liderou um fracassado levante militar em 1992. O presidente, de seu lado, não economizou palavras para demonstrar a aliança de Pedro Carmona com a Casa Branca, num quadro de radicalização internacional promovida pelo governo de George W. Bush, poucos meses após os atentados de 11 de setembro de 2001.
Produto de uma crise
O mandato de Chávez, desde sua posse, em janeiro de 1999, foi pontuado por tensões e enfrentamentos. Mas, ao contrário do que a mídia internacional martelava incessantemente, o presidente não provocara crise alguma em seu país. Ele sim, como personagem político, é fruto de uma avassaladora crise econômica, social e política que castigava a Venezuela desde a segunda metade dos anos 1980. Iniciada com uma queda vertiginosa dos preços internacionais do petróleo, principal produto de exportação, o desarranjo mostrou-se estrutural, corroendo serviços e instituições públicas, partidos e lideranças políticas, num quadro de descrédito coletivo.
Um olhar superficial poderia classificar o surgimento de Chávez na cena política como a chegada de um salvador da Pátria. Ao longo dos anos, ele mostrou ser não apenas um dirigente capaz de recompor as bases institucionais da Venezuela, mas de tornar-se um fator de estabilidade política.
As classes dominantes locais e seus aliados internacionais somente muito mais tarde perceberiam não estar diante de mais um governante que poderia ser apeado da cadeira presidencial a qualquer momento. O ex-militar tornou-se caudatário de algo mais profundo. Sua legitimidade expressa uma mudança na estrutura de classes do país, com a entrada em cena de multidões empobrecidas e desiludidas, com difusos anseios de mudança.
Seria muito difícil, nessas condições, o governo golpista se estabilizar. Se derrotasse a investida popular, Carmona teria de seguir lançando medidas draconianas para se manter.
Força e fraqueza
A força do governo é, contraditoriamente, a razão de sua fraqueza. O presidente é não só um líder, mas o principal e praticamente único garantidor da estabilidade política e social. É o porta-voz central de seu governo, assim como é o grande intelectual, formulador e estrategista das ações de Estado.
O câncer que acomete atualmente o presidente Hugo Chávez tem, assim, duas dimensões principais. É um drama pessoal. Não se conhece claramente sua extensão ou gravidade. E pode se tornar uma tragédia política. Se a situação se agravar, não há substituto à altura. Nenhum membro do governo ou das forças aliadas poderia conduzir o processo político local sem enfrentar sérias turbulências iniciais. Não há uma Dilma do Chávez.
Dez anos depois do golpe, o presidente continua a manter índices de aprovação acima de 60%. Há fatores objetivos para alavancar tais indicadores: a vida melhorou na Venezuela. Os pobres comem mais, têm mais acesso à saúde, educação e serviços sociais essenciais. A sociedade segue violenta, mas a desigualdade se reduziu. Se tentarmos sintetizar esse período, podemos dizer que a grande diretriz oficial tem sido a de fortalecer o Estado e investir prioritariamente nas áreas sociais.
Os mandatos de Chávez têm sido marcados por enfrentamentos de variados tipos. Eles vão de tentativas de tirá-lo do poder a turbulências econômicas agravadas pela crise de 2008. A isso se somam dificuldades enfrentadas por um país quase sem indústrias, cuja economia baseia-se em grande parte na exportação de petróleo.
Chávez é o grande favorito para vencer as eleições presidenciais de outubro. Mas a vitória não representará o fim dos problemas.
O presidente agora luta pela vida. Nas condições atuais da Venezuela, isso tem um significado político vasto, profundo e decisivo para o país.
Carta Maior
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