Por Ana Barbosa
Poder mandar não significa mandei
A teoria do domínio do fato serve à distinção entre autor e partícipe
de um crime, não para se comprovar a participação de um acusado
FERNANDA LARA TÓRTIMA -ADVOGADA CRIMINAL, MESTRE EM DIREITO PENAL
PELA UNIVERSIDADE DE FRANKFURT AM MAIN (ALEMANHA) -O Estado de S.Paulo
Recentemente, o professor emérito da Universidade de Munique Claus
Roxin, o grande especialista na teoria do domínio do fato, citada no
julgamento da Ação Penal 470, concedeu algumas poucas entrevistas a
respeito da teoria em questão, publicadas em periódicos brasileiros. Foi
o suficiente para que se passasse a insinuar que o eminente jurista
teria censurado nosso Supremo Tribunal Federal.
Ed Ferreira/EstadãoRelator e revisor. Barbosa e Lewandowski duelaram durante o julgamento
Nada menos verdadeiro. Pensar que Roxin teria criticado diretamente
os votos proferidos durante o citado julgamento é, no mínimo, pueril. E
divulgar essa ideia é leviano. É evidente que, apesar de nos ter
brindado com uma breve visita ao Rio de Janeiro, para evento acadêmico,
no final do mês de outubro, não teve oportunidade de ouvir, a respeito
do processo, mais do que algumas explicações superficiais. Suas
manifestações limitaram-se à reprodução, em caráter abstrato, de ideias
que já vinham sendo por ele divulgadas há aproximadamente cinco décadas
em diversas publicações científicas.
Por outro lado, as entrevistas por ele gentilmente concedidas, se
observadas corretamente, como fonte de doutrina, fazem ver que a teoria
do domínio do fato parece ter sido utilizada equivocadamente durante o
julgamento da Ação Penal 470.
A bem da verdade, não é tarefa fácil compreender a forma como a
teoria em questão serviu ao resultado condenatório. Falou-se, de forma
descontextualizada, a respeito de domínio "final" ou "funcional" do
fato; chegou-se a invocar a formulação dos aparelhos organizados de
poder e, ao que parece, pretendeu-se inserir os enunciados da teoria na
análise da prova dos autos, a ponto de se fazer crer que a identificação
da posição hierárquica de alguns acusados dentro da estrutura de poder
poderia contribuir para a presunção de que teriam eles participado de
determinadas condutas criminosas. Em outras palavras, passou-se a
impressão de que a mera circunstância de alguém ocupar elevada posição
hierárquica fundamentaria a responsabilidade pela prática do crime.
Essa utilização da teoria do domínio do fato seria absolutamente
incorreta. Não se pode, de forma alguma, mesclar suas premissas com a
análise da prova de que alguém tenha concorrido para a realização de um
crime. A teoria do domínio do fato serve exclusivamente à distinção
entre autores e partícipes de um crime, após ter sido devidamente
demonstrado terem os acusados concorrido para sua realização. A tese não
é complexa: uma vez comprovado - e somente após isso - que determinado
acusado contribuiu para a prática criminosa, verifica-se se ele o fez
dominando os fatos. Em caso positivo, atuou ele como autor; caso
contrário, como simples partícipe (mandante, isto é, instigador, ou
cúmplice).
Não se pretende aqui afirmar que não existiam provas para a
condenação de qualquer um dos que figuram como acusados no processo em
questão. Também não se pretende concluir serem inadmissíveis condenações
em ações penais em geral com base em provas indiciárias. Mas o que não
se pode conceber é que a teoria do domínio do fato seja utilizada para
finalidades para as quais não foi desenvolvida. E ela não foi criada
para fins de comprovação de que determinado acusado tenha participado de
condutas criminosas.
Também se fez menção, em passagens do julgamento da AP 470, à
formulação relativa aos aparelhos organizados de poder, desenvolvida por
Roxin no âmbito da teoria do domínio do fato. A formulação fora
corretamente utilizada no julgamento do ex-presidente Alberto Fujimori
pela Corte Suprema peruana. Lá não se mesclou o uso da teoria com a
análise da prova dos autos, apenas condenou-se Fujimori como autor, e
não mero partícipe, considerando-se ter ele exercido, por meio de uma
estrutura organizada de poder, o domínio da vontade dos autores que
realizaram o tipo pelas próprias mãos (imediatos). Sem a teoria do
domínio do fato, Fujimori não teria sido absolvido, mas condenado como
partícipe.
Aqui, ao contrário, passou-se ao menos a impressão de que o decreto
condenatório de determinados acusados - e não apenas a designação deles
como autores ou partícipes - decorreu da aplicação da teoria do domínio
do fato, o que, como se viu, importa em incontornável equívoco.
A teoria do domínio do fato ainda é pouco utilizada em julgados
brasileiros. Não se pode deixar de lamentar que aparentemente se tenha
recorrido ao seu uso de forma equivocada em um julgamento de tamanha
repercussão. A preocupação não é apenas com as consequências do erro no
caso de que estamos falando, mas sim com sua reprodução, possivelmente
também errônea, em milhares de decisões judiciais a serem proferidas no
País. A teoria do domínio do fato assumiu no julgamento da Ação Penal
470 ares de novidade. A adoção de teorias aparentemente herméticas, e,
de toda sorte, conhecidas por uma parcela pequena da população e mesmo
da comunidade jurídica, costuma servir de álibi para drásticas
alterações de orientação de entendimento jurídico. A culpa passa a ser
da "nova" teoria, como se ela não existisse antes, e como se servisse
aos fins para os quais foi utilizada.
Blog do Luis Nassif
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